Texto retirado do site Libertas e escrito pelo Professor Henrique Carneiro.
A história de certos conceitos médicos é essencialmente política, ou seja, ligada ao poder e aos interesses materiais de instituições, classes, camadas e grupos sociais . Talvez o conceito médico mais controverso do último século e meio seja o de “dependência” de drogas. Este é o termo hoje adotado como o mais indicado, de acordo a uma nomenclatura normatizada internacionalmente pela OMS, mas antes dele houveram outros termos análogos e igualmente oficiais em suas épocas, tais como “adição”, “hábito”, “transtornos da vontade”, “insanidade moral”.
A construção política dos conceitos conecta o Estado e a Medicina, pois a “história social da linguagem é basicamente uma questão de poder” (Burke, 1987). Existem conceitos investidos de alto poder simbólico, conceitos “tótens”, como escreve Berridge (1994). A demonização do “drogado” e a construção de um significado suposto para o conceito “droga” alcança na época contemporânea um auge inédito. Um fantasma ronda o mundo, o fantasma da droga, alçado à condição de pior dos flagelos da humanidade.
Afinal, o que é a dependência de drogas? Hábito, vício, necessidade, desejo, vontade. Na definição atualmente aceita, o “abuso” se distinguiria do “uso” por produzir um quadro de tolerância, síndrome de abstinência, compulsividade, desestruturação da vida pessoal e persistência no consumo apesar dos efeitos nocivos .
O surgimento deste conceito, assim como deste personagem, é simultâneo de uma série de outros, como o “homossexual”, o “alienado”, o “erotômano” ou “ninfomaníaca”, o “onanista”. Antes desse momento impreciso, que toma seus contornos no início do século XIX, beber demasiado não era uma doença. No máximo, uma prova de mau caráter ou de falta de auto-controle. A embriaguez não suprimia a vontade, aliás, não se distinguia entre desejo e vontade de beber, não havia um vocabulário que expressasse a existência de uma compulsão, de uma escravidão à bebida ou alguma outra droga. As exceções são alguns relatos sobre o uso do ópio no Oriente no século XVI e, a partir do século XVIII, os primeiros autores (J. Jones, 1701; Lettson, 1787; S. Crumpe, 1793) que passam a descrever “uma perda de controle voluntária do hábito”, que será mais tarde chamada de “abuso” (Berridge, 1994). Mas acima de tudo, o uso do álcool e outras drogas era visto como uma prática condenável em muitos aspectos, e virtuosa em outros, mas jamais como uma doença.
A doença do vício será uma construção do século XIX. A concepção da embriaguez como doença pode ser datada de 1804, quando Thomas Trotter publicou o Essay Medical Philosophical and Chemical on Drunkenness, que seria considerado um marco na “descoberta” (ou na criação?) de uma nova entidade nosográfica na medicina. Para Trotter, o hábito da embriaguez seria “uma doença da mente”.
Benjamin Rush, nos Estados Unidos, já em 1791, relacionara alcoolismo e masturbação como “transtornos da vontade”, desencadeando contra ambos uma campanha médica e psiquiátrica. Na França, Esquirol tipificou a ebriedade como “monomania” e “insanidade moral com paralisia da vontade”.