Nota de repúdio às declarações da Profª. Maristela Basso sobre a Bolívia

 

 

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Nota de repúdio às declarações da Profª. Maristela Basso sobre a Bolívia

São Paulo, 31 de agosto de 2013

O Centro Acadêmico Guimarães Rosa (Relações Internacionais – USP) vem a público manifestar seu amplo repúdio e indignação em relação às declarações da Professora de Direito Internacional da USP, Maristela Basso, sobre a Bolívia e o povo boliviano. Comentarista política do telejornal da TV Cultura, a docente disse no programa do dia 29/8/2013:

“A Bolívia é insignificante em todas as perspectivas, (…) nós não temos nenhuma relação estratégica com a Bolívia, nós não temos nenhum interesse comercial com a Bolívia, os brasileiros não querem ir para a Bolívia, os bolivianos que vêm de lá e vêm tentando uma vida melhor aqui não contribuem para o desenvolvimento tecnológico, cultural, social, desenvolvimentista do Brasil.”

O fato de a Bolívia supostamente não ter relevância econômico-comercial para o Brasil e ser um país pobre não a torna menos merecedora de nosso mais profundo respeito. Da mesma forma, os imigrantes bolivianos que vêm ao Brasil “tentar uma vida melhor” e que de maneira geral sofrem com as intempéries do trabalho precário e da subcidadania merecem no mínimo a nossa solidariedade.

Respeito e solidariedade foram conceitos que passaram longe da declaração professora Maristela Basso. É estarrecedora a tranquilidade e a naturalidade com a qual ela fez o seu comentário explicitamente degradante e xenofóbico em relação a um país vizinho.

A fala da professora expressa o mesmo desprezo que um brasileiro ou qualquer outro latino-americano poderia sofrer por parte dos países “desenvolvidos” – muitos dos quais, não por coincidência, nossos colonizadores. Desconheceria a docente que nós também compartilhamos de um passado colonial? Ou talvez isso simplesmente não importe quando supostamente não existem “interesses estratégicos e comerciais”, o que nos faz pensar sobre o lugar que ocupam as temáticas de paz e direitos humanos nos estudos e preocupações da professora.

O fato é que nós temos muito mais a ver com a Bolívia do que quer dar a entender a fala de Maristela Basso. Compartilhamos com este país vizinho e o resto da América Latina de um passado de brutal exploração. Uma exploração que começou com a colonização, mas que não acabou com ela e cujos efeitos ainda tentamos superar. Exploração que ainda predomina na mente colonial dos “países desenvolvidos”, ao inferiorizar tanto os governos quanto a população latino-americanos, incluindo o Brasil. Não podemos nos tornar iguais àqueles que nos subjugam.

Há razões históricas para a Bolívia ser pobre como é hoje em dia e para haver tantos imigrantes bolivianos se arriscando no Brasil. São as mesmas razões pelas quais em toda América Latina, incluindo o Brasil – como se sabe ainda um dos países mais desiguais do mundo – há tanta pobreza. Uma delas certamente é a obra histórica da uma elite que descolonizou o continente em proveito próprio, mas jamais para emancipar de fato o seu país e o seu povo. Elite que, afinal, pensava como o colonizador. E que falava como Maristela Basso fala.

É, portanto, essa mentalidade negligente com o nosso passado e que subsidia com naturalidade a xenofobia o que de fato não contribui, em nenhuma perspectiva, para o nosso desenvolvimento. E é contra essa mentalidade – tão bem representada pela lamentável fala de Maristela Basso – que apresentamos todo nosso repúdio.

Com a mesma determinação, nos solidarizamos com a Bolívia, o povo boliviano e os imigrantes que aqui vivem e convidamos a todas as entidades interessadas a assinar e divulgar essa nota.

Atenciosamente,

Centro Acadêmico Guimarães Rosa

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Nossa sincera admiração ao coletivo feminista autônomo da Bolívia: Mujeres Creando! http://www.mujerescreando.com/

Melanina tem de sobra, não precisa economizar: não me chame de moreno

extraído do blog: https://medium.com/i-m-h-o/d76ef55e3c61

Perguntam por que eu não gosto que me chamem ou que chamem meus pares, negros e negras, de morenos e morenas. E não só reclamo como também corrijo, afirmando: é preto, é preta. Não quero ser o fiscalizador da minha ou da melanina alheia, mas saiba: isso de embranquecer o outro ofende.

Primeiramente quero dizer que não tenho nada contra a palavra moreno e com quem seja moreno. Nada! Esse texto não fala dessas pessoas. Fala sobre as implicações de quem usa o vocativo ‘moreno’ para um negro (explicado isso, espero que ninguém desvie a discussão para esse lado, combinado?).

Ao chamar uma pessoa negra de morena, não só a cor dela é apagada, como também todas as suas marcas de luta e resistência de cinco séculos de um Brasil racista. Isso afasta esse preto que está sendo embranquecido da sua identidade – o que acaba sendo mais efetivo (e prejudicial) se esse indivíduo ainda não tiver se reconhecido negro. Como escrevi em “Quando tirei minha negritude do armário”, o processo de se assumir e se orgulhar da sua etnia pode ser longo, dado o contexto de inferiorização que negros são expostos cotidianamente.

Assim, ao contribuir para o afastamento desse negro de sua identidade, o distanciamento de seu grupo é inevitável. Da mesma forma que há uma diluição do fenótipo, há uma diluição do coletivo.Consequentemente, há uma quebra de diálogo, a perpetuação de uma inconsciência negra e o enfraquecimento da luta.

Normalmente, vejo esse vocativo aparecendo em situações nas quais negros atingem algum espaço de poder/representatividade, ou transitem em meios hegemonicamente brancos, ou ainda quando recebem um elogio. Nessas configurações e em outras existentes, está errado chamar um negro de moreno. E, por mais que você não perceba (ou não queira perceber), no meio de todas elas, há um quê de racismo ligado historicamente ao dominante e ao dominado.

Por vezes, quando um negro atinge uma posição de poder ou de representatividade e transita em meios hegemonicamente brancos,ele não é reconhecido como negro por quem compartilha esses mesmos espaços. Historicamente, ele não pertence a esses lugares — seu “habitat natural” seria à margem. A não ser na música e no esporte (Sovik, 2004), o negro brasileiro não ocupa espaços de poder e de representatividade social, nem caminha nos que são hegemonicamente brancos. Para o outro que transita e faz parte de lugares de prestígio, um negro seria o corpo estranho não legitimado de presença. Então, a única forma desse intruso ter conseguido adentrar o meio é que ele tenha alguma coisa que o aproxime dos historicamente dominantes, os brancos. Ou seja, algo que o torne “não tão negro assim”. Seria o entoado “moreno” — mesmo de pele escura, de cabelo crespo e de nariz largo — ainda assim um “moreno”. Afinal, “não é natural” que um negro atinja um patamar alto.

Outra situação é a do elogio. Para quem fala que uma negra, é uma “morena bonita”, por exemplo, só consigo enxergar três explicações possíveis. A primeira é que, para alguns, as palavras negra e preta sejam tabus. Não são! Pode falar em voz alta, se liberte! A segunda explicação (ligada a primeira) é que alguns possam — ainda — achar que esses termos e suas variações de gênero são pejorativos, ou que inferiorizam, beirando o xingamento. E que, por isso, não podem completar um elogio, visto que se tornaria antitético um polo negativo e um positivo na mesma oração, certo? Errado! Esse é um pensamento racista. Essas palavras não diminuem ninguém. Elas exprimem a condição do indivíduo enquanto ser e fazer parte de um grupo, além de trazer consigo contextos históricos. Por fim, a terceira explicação (ligada às duas anteriores) é que alguns consideram o termo ‘moreno’ “superior”, podendo maximizar o elogio. Enquanto a palavra negra inferioriza, a morena agregar valor. Igualmente errado!Reproduzir esse pensamento, é (in)conscientemente concordar com a estrutura racista que coloca a branquitude numa posição de superioridade, sendo o termo moreno elogioso por estar mais próximo do branco que o negro.

Fica a lição: não nos embranqueça! Preto é preto, moreno é moreno.Chamar uma pessoa negra de morena desconstrói, simbolicamente, toda uma identidade e um grupo social. E o resultado pode ser um negro em posição de destaque nacional dizendo, em 2005, que é branco (Alô, Ronaldinho Fenômeno! Meu nêgo, vamos rever essa identidade étnica e essa responsabilidade social).

Entenda: não use suas palavras para apagar a minha cor. Como diria o Ilê Aiyê, “se você está de ofender, é só chamá-lo de moreno, pode crê. É desrespeito à raça, é alienação”.


Higor Faria é preto, publicitário, estuda masculinidade negra e escreve no https://medium.com/@higorfaria

Fechamento da FAU e mais um espaço estudantil sendo atacado

O Gfau na última semana divulgou duas notas importantíssimas. Na primeira revela que devido à reforma na cobertura do prédio, existe uma possibilidade, defendidas pelxs professorxs, de esvaziar o prédio durante este período. Na segunda, ainda mais grave, informa acerca da organização de uma sindicância que poderá ser aberta pela administração da FAU contra o grêmio, devido a alguns problemas no Piso do Museu, administrado pelxs estudantes.

É significativo que os espaços estudantis da FFLCH, ECA e FAU estejam sendo atacados constantemente nos últimos tempos. São estudantes que ainda demonstram resistência e luta política, sendo protagonistas da última greve. O cerceamento de seus espaços é uma ataque direito a suas possibilidades de organização. É preciso lutar fortemente por esses territórios!

Seguem as notas publicadas pelo GFAU:

“No dia 30 de agosto foi feita uma reunião extraordinária do Conselho Técnico Administrativo (CTA) da FAU pra discutir os impactos da reforma da cobertura.

A poeira e o barulho tem prejudicado não apenas o andamento de todas as atividades na FAU, como também a saúde dos funcionários (especialmente os terceirizados da limpeza), estudantes e professores.

Tendo isso em vista, a principal proposta defendida pelos professores na reunião foi a saída do edifício e realização das atividades letivas em outras unidades da USP – de acordo com a oferta de espaço disponível – até o término da obra. Isso seria feito ainda esse semestre, possivelmente mês que vem.

No entanto, o edifício da FAU está diretamente relacionado ao projeto de escola proposto. Ele carrega um significado único para o ensino de arquitetura no Brasil. Além disso, o funcionamento das atividades aqui realizadas seria inviabilizado. Não teríamos fácil acesso à biblioteca, os departamentos poderiam ficar separados em diferentes prédios e não teríamos contato com a administração da FAU. Não teríamos estúdios, o piso do museu, o salão caramelo e nenhum dos espaços de vivência dos estudantes. Seria uma outra formação.

Além de tudo, como estudantes da FAU, a nossa relação com este lugar torna importante a nossa participação e acompanhamento da reforma. As propostas colocadas por pessoas que não tem a mesma proximidade com este espaço muitas vezes desconsideram detalhes intrínsecos ao projeto.

Levando em conta a questão sob todos esses aspectos é importante que nos juntemos para tirar algum posicionamento. Foi marcada para a sexta feira, dia 13, a próxima reunião do CTA em que será decidido o posicionamento do órgão a ser levado para a congregação. No dia anterior será feita uma apresentação para a comunidade FAU sobre o tema. Assim, é necessário que essa discussão se inicie na segunda-feira para a arquitetura e para o design. Contamos com a presença de todos.”
31-08

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“Na última semana soubemos que a administração da FAU está organizando a abertura de uma sindicância contra o GFAU.

Trata-se de um processo administrativo que visa apurar todos os problemas de segurança, como furtos e depredações, gerados pelas atividades que ocorreram no Piso do Museu. Refere-se principalmente aos roubos ocorridos em um repiauer realizado ainda no começo do ano e organizado por um grupo dos estudantes.

A sindicância visa, portanto, delinear os problemas de segurança que ocorrem no Piso do Museu, cuja gestão que há muito pertence ao GFAU foi fixada no fórum do plano diretor de 2011. Logo, vemos que seu intuito é desqualificar a gerência do piso criando uma justificativa para retirá-lo da gestão dos estudantes e colocá-lo sob administração da diretoria.

A perda do Piso dos estudantes representa uma séria mudança na vida da comunidade FAU. Isso afetaria diretamente a possibilidade de organização os estudantes e suas atividades, que ficariam submetidos ao aval da burocracia e pela dinâmica de funcionamento da FAU. Além disso seria também comprometida a existência da Cooperativa Monte Sinai, da papelaria do Mário, da gráfica e do livreiro.

Representa ainda uma ameaça ao espaço de reunião do GFAU, da atlética, outros grupos estudantis e à vivência. A perda desse espaço implica na inviabilização das atividades do GFAU e atlética, cuja renda provém dos aluguéis do piso e festas (proibidas na USP por diretriz da reitoria).

Além disso, os estudantes já realizaram discussões e tomaram iniciativas com o intuito de melhorar a organização dos repiauers e ressarcir os danos causados a qualquer locatário do Piso do Museu. Assim, repudiamos a culpabilização do GFAU por fatos que já foram discutidos e remediados dentro do âmbito organizacional dos estudantes.

E, no sentido de preservar e manter os espaços e usos que desejamos e que fazem parte da nossa formação, nos colocamos contrários à retirada do Piso do Museu da gestão estudantil.”
03-08

Cine Protesta – 1ª Mostra Lutas Sociais no Brasil – dia 05/set!

Dia 05/09 as 18:00 horas
ECLA (Espaço de Cultura Latino América)
Rua Abolição,244 – Bela Vista – SP

Filmes que serão Exibidos 
* Documentário Mães de Maio:
Um grito por justiça, 2012
* Entre Muros e Favelas, 2005

Debate
* Debora – Movimento Mães de Maio
* Danilo Dara – Movimento Mães de Maio
* Coletivo DAR (Desentorpecendo a Razão)

Em breve divulgação das próximas exibições. Acompanhe o blog: https://protesta.milharal.org

O contextualismo autoritário d’O Globo

 

“(…) o nome comum da práxis histórica só pode ser ‘genealogia do presente’, quer dizer, uma imaginação que traz a ser aquilo que existiu antes, da mesma maneira como constitui o ser por vir. Não se interpreta o passado, mas se experimenta.”

Antonio Negri, Kairòs, Alma Venus, Multitudo, p. 66.

As organizações Globo, após se verem transformadas em um dos alvos diletos das manifestações que povoaram as ruas de todo o Brasil a partir de junho (quando não em objeto principal de manifestações especificamente convocadas contra elas), lançaram um editorial aquiescendo do apoio dado ao golpe de 1964, instaurador de uma longa ditadura civil-militar, e manifestando que este erro ‘à luz da História’ (expressão que, como argumentaremos, é a chave para se entender a razão de não haver nenhuma confissão de erro, mas sim um ajuste histórico de posição das organizações) vem sendo debatido internamente desde há muitos anos, vindo à lume apenas agora por motivos do projeto Memória e sendo ‘chancelado’ pela ‘verdade dura’ exposta nas ruas.

Inicialmente, o texto intitulado ’1964′, aquiesce, de forma aparentemente severa, do erro de as organizações Globo terem sustentado o golpe, afirmando que a lembrança dessa postura, sempre exercitada por insatisfeitos com ‘qualquer reportagem ou editorial’ atual, não é refutável. ‘É História’, afirma o texto. A continuidade do texto alude, entretanto, tanto aos diversos veículos de imprensa que, assim como O Globo, apoiaram a ‘intervenção dos militares’, quanto ao ‘apoio expresso em manifestações e passeatas organizadas em Rio, São Paulo e outras capitais’, ou seja, apoio da própria população. É o primeiro passo do procedimento contextualista.

No passo seguinte, O Globo reconstitui a situação histórica e política em que teria se dado a sua intervenção editorial. Em meio a Guerra Fria, a polarização ideológica entre as forças defensoras do comunismo e do capitalismo era reproduzida em todos os países e, no Brasil, ‘ela era aguçada e aprofundada pela radicalização de João Goulart’, acusado, à época, de tentar instalar uma ‘república sindical’ no país (insinua-se a cantilena do golpe como contra-golpe preventivo). Jango teria conseguido revogar o parlamentarismo (aqui, embora, se mencione que isto se deu pela via de um plebiscito, o tom é o de que Jango logrou aceder aos ‘poderes plenos do presidencialismo’ por um golpe de mão e não por delegação soberana do povo brasileiro — quase 9,5 milhões de brasileiros votaram pelo retorno ao presidencialismo e apenas 2 milhões votaram pela manutenção do parlamentarismo). Feria-se, assim, a ‘saída negociada’ (eufemismo que designa o golpe frustrado de 1961, quando, após a obscura renúncia de Jânio, Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul, iniciou um movimento de resistência, a Campanha da Legalidade, que freou a iniciativa golpista ao colocar o país na iminência de uma guerra civil caso Jango não assumisse).

Com os ‘poderes plenos do presidencialismo’ Jango teria dado início a uma radicalização da conjuntura política, ameaçando atropelar o Congresso e a Justiça para promover as reformas de base ‘na lei ou na marra’. O mote, em verdade, era dos movimentos sociais, como as Ligas Camponesas de Francisco Julião, e não de Jango e de militares próximos – um pequeno deslocamento discursivo muito útil à conformação do contextualismo justificativo do golpe. Com a explosão do movimento dos sargentos, a caserna, já ‘intoxicada’ de política, teria afundando em grave crise, e se desenhou o horizonte do golpe, uma intervenção ‘cirúrgica’, destinada a apenas a restaurar a ordem, devolvendo-se o poder aos civis tão logo o ‘perigo de um golpe à esquerda’ fosse eliminado. Não foi entretanto o que aconteceu. E é O Globo que admite:

“Não houve as eleições. Os militares ficaram no poder 21 anos, até saírem em 1985, com a posse de José Sarney, vice do presidente Tancredo Neves, eleito ainda pelo voto indireto, falecido antes de receber a faixa.”

(Corta para vinte anos depois – ficar detalhando o que ocorreu, por exemplo, entre 1968 e 1974, não seria recomendável).

Em 1984, quando o golpe completava vinte anos, entretanto, Roberto Marinho publicaria um editorial assinado na capa d’O Globo. Nele — um ‘documento revelador’, de fato, como se afirma em ’1964′ –, Marinho ressaltava a magnânima atitude do general Geisel de extinguir os atos institucionais e demais decretos ditatoriais (nada disso teria sido fruto da luta política intensa pela redemocratização, mas uma concessão de um ditador comprometido com a democracia). Além disso, destacava os avanços econômicos do regime (o arrocho salarial dos anos da ditadura e o intenso aumento da desigualdade social, apenas sanados nos últimos dez anos, não mereceram consideração) e voltava a declarar a crença de que as intervenções repressivas haviam sido ‘imprescindíveis’, não só em 1964, como ainda posteriormente, contra a ‘irrupção da guerrilha urbana’. Todo o palavrório de contestação moderada que se segue a justificação dos desaparecimentos, torturas e assassinatos (‘imprescindíveis para a manutenção da democracia!’) é tão somente a tentativa de maquiar a monstruosidade do apoio post-festum às atrocidades do autoritarismo.

A ‘mágica’ do contextualismo autoritário fica clara, entretanto, nos últimos três parágrafos do texto.

O texto d’O Globo afirma a História como ‘o mais poderoso instrumento de que o homem dispõe para seguir com segurança rumo ao futuro’ e a necessidade da contextualização na análise do ‘posicionamento de pessoas e instituições’. Invoca-se a máxima (inscrita na frase de Cícero, Historia magistra vitae est) da História como mestra da vida – que o pensamento histórico abandonou a partir da sua concepção moderna ou pós-renascentista — para assinalar que se aprende com os erros cometidos e reconhecidos.

O texto, então, opera um corte notável: os homens e as instituições que viveram 1964 são ‘história’, passado, devendo ser entendidos nessa perspectiva e, em seguida, afirma com todas as letras: ‘O GLOBO não tem dúvidas de que o apoio a 1964 pareceu aos que dirigiam o jornal e viveram aquele momento a atitude certa, visando ao bem do país.’ O que se anunciava como a confissão de um erro, através do condão da Historia e da mágica do contextualismo transforma-se, diante dos olhos incrédulos de qualquer leitor atento, numa justificação contextualizada do golpe de 1964, que, entendido nos seus termos, teria sido a ‘atitude certa’! O vertiginoso zigue-zague de opiniões prossegue no último parágrafo, quando o texto faz notar que ‘à luz da História, contudo, não há por que não reconhecer, hoje, explicitamente, que o apoio foi um erro’. O procedimento contextualista do autoritarismo está completo. Operou-se um corte que instalou o erro como acerto na História (que o texto identifica com o passado) e o acerto como erro no presente.

O editorial d’O Globo se utiliza de uma diatribe corrente na reflexão sobre a história e a historiografia, segundo a qual a história só faria sentido nos termos dela mesma e, portanto — para fins de manutenção da ‘neutralidade axiológica’ do discurso historiográfico, evitando-se sua ‘politização’ — deve ser isolada, tanto quanto possível do presente, o anacronismo (ou seja, ‘um desencontro ou encontro sem cabimento; onde valores, hábitos, crenças de épocas diferentes são tratados como se fossem as mesmas coisas’) constituindo-se no pecado, por excelência, do historiador. No lugar dele, instaura-se uma homogeneização do tempo do qual o discurso histórico pretende tratar, cortando-se os fios entre passado e presente.

O texto d’O Globo parece uma boa oportunidade para que se reflita a respeito das consequências deste tipo de pensamento (amplamente disseminado) a respeito do discurso histórico e historiográfico. Mais do que isso, uma oportunidade para que se repense a centralidade do anacronismo no interior da prática histórica, não como incômodo a extirpar, mas como condição constituinte de todo e qualquer conhecimento histórico, que deve, por conseguinte, ser articulado no interior do discurso e não, pretensamente, deixado fora dele. Pensar a história (e o presente, história in actu) como instantes infinitos em que o tempo está aberto para diversos caminhos é a única maneira de impedir que discursos justificadores do autoritarismo se insinuem por dentro da própria prática historiográfica, dando azo, e validando discursivamente, operações como a que as organizações Globo protagonizaram. Mais do que afirmações peremptórias a respeito, que fique a necessidade da reflexão sobre as apropriações da história, não só como processo, mas também como regime de verdade que se articula na supressão dos diversos possíveis entre os quais os homens e mulheres de todos os tempos decidem todos os instantes.

Silvio Pedrosa.
http://oladoesquerdodopossivel.wordpress.com/2013/09/01/o-contextualismo-autoritario-do-globo/