Não há dia que passe sem que a mídia publique a opinião de mais um intelectual sobre o novo fenômeno das ruas. Para você que não quer ficar de fora, a Baderna Midiática dá a receita de como fazer um típico texto de intelectual midiático “de esquerda” sobre os tão falados black blocs.
Os paralelos históricos são uma ferramenta importante para tentar entender o presente. Mas, com uma pequena dose de má fé ou ignorância, eles também podem ser usados de maneira inversa, para confundir. Como o black bloc é pouco conhecido, uma boa estratégia para desqualificá-lo é dizer que ele é igualzinho a algo que já aconteceu antes. Para uma argumentação mais moderada, recomenda-se compará-lo ao luddismo. Para quem não se lembra, os ludditas foram os quebradores de máquinas que se opuseram à nascente industrialização na Inglaterra no inicio do século XIX. Desde cedo os ludditas entenderam algo que demorou um século e meio para entrar nas cabeças bem pensantes da esquerda ortodoxa: a técnica não é neutra. Mas, apresar disso, os ludditas passaram para o senso comum da esquerda tradicional como exemplo de suma ignorância, pois não teriam entendido que o problema não eram as máquinas em si, mas a exploração capitalista. Da mesma forma, os black blocs, coitadinhos, não entenderam que não adianta quebrar os caixas eletrônicos e as agências bancárias para acabar com o capitalismo. Mas cuidado, essa comparação pode ser perigosa. Os ludditas foram criticados pelo movimento operário posterior porque se limitaram a quebrar máquinas, quando deveriam ter atacado os senhores das máquinas; exigiram a restauração de sua condição anterior de trabalhadores-artesãos, ao invés de questionar sua condição de explorados. É preciso, portanto, ser claro para evitar que a comparação com os ludditas leve a ideias ainda mais radicais – queremos é que os black blocs voltem para casa. A solução é simples. Basta mostrar como os mecanismos do sistema produzem efeitos mais concretos do que o quebra-quebra, e que, logo, é muito mais radical aderir ao sistema do que questioná-lo. Sugestões dos internautas: dizer que “baixar em um ponto a taxa de juros é mais eficaz do que quebrar bancos”, ou que “falta organização política aos black blocs” (por “organização” leia-se: filiação partidária).
A comparação com as Revoluções do passado é salutar. Sabemos bem que a esquerda partidária há muito abandonou toda pretensão revolucionária. Mas ela ainda se vê na obrigação de olhar com bons olhos algumas revoltas de outrora, exemplos dignos do uso da violência. Por conta disso, a esquerda partidária não pode, ao contrario da direita partidária, recusar inteiramente a violência (mas obviamente a violência do Estado não entra nesta conta). É preciso distinguir, então, entre uma violência boa e uma violência má. A principal característica da violência boa, chamada de “violência revolucionária”, é a de ter existido no passado e de não existir mais. Se atual, ela deve necessariamente estar muito longe de nós. Já a característica da violência má é a de estar nas ruas, aqui e agora. Caso tenha duvidas se a violência de um movimento é boa ou não, basta fazer a seguinte pergunta: eu posso tomar parte direta nesse movimento? Se a resposta é “não”, pode falar em “violência revolucionária” sem temor. Assim, pode louvar a violência dos “rebeldes” sírios ou dos resistentes palestinos, sem por isso ter vergonha de desacreditar os black blocs que quebraram a sua agência Bradesco.
Mas, sobretudo, é preciso deixar claro que a violência das Revoluções do passado nada tem a ver com tudo que se passa no presente. Para reforçar esse argumento, você pode insistir no fato de que os sujeitos são outros. A violência de 1917 era fruto da pura união dos explorados operários com os explorados camponeses. Em 1968, os operários se juntaram dessa vez aos estudantes, que, naqueles tempos sim eram revolucionários (“não se fazem mais estudantes como antigamente”, nos dizem os professores que ensinam a esses estudantes!). Para gerar um contraste perfeito, esvazie a subjetividade da violência atual, faça dela uma violência sem sujeito, com o uso de fórmulas repetitivas, tautológicas: “vandalismo de vândalos”, “baderna de baderneiros”. Se achar realmente necessário nomear os sujeitos, a sugestão de um internauta é: aludir a uma aliança entre estudantes baderneiros e criminosos da periferia. Essa alusão tem a vantagem de despertar o medo-classe-média, mas é um pouco forçada e você corre o risco de fazer papel de Bucci.
Para os menos moderados e mais sem vergonhas, recomendamos o paralelo “super-trunfo”: comparar os black blocs aos fascistas italianos. Na falta de argumentos para fundamentar tal comparação (já que esses simplesmente não existem) você sempre pode apelar para a cor da camisa. A analogia é frágil, para dizer o mínimo, mas perante uma plateia de policiais pode colar.
Atenção! : desaconselhamos todo e qualquer paralelo com revoltas do passado brasileiro. Nada de falar em balaiada, cabanagem, motim do vintém ou revolta da vacina! Além de não serem chiques como os exemplos europeus, os exemplos tupiniquins podem abalar a ideia de que o povo brasileiro é, por natureza, “pacífico e ordeiro”.
Para aqueles que não gostam do visual retrô e preferem a última moda, nada como evocar o inimigo número 1 da nova ordem mundial: o terrorismo. Nos EUA, o “gigante” do norte, o terrorismo tem feito maravilhas para o avanço do sistema repressivo e de controle da vida dos cidadãos. Aqui no Brasil, ele pode fazer o mesmo. Infelizmente ainda não existem indícios de que os black blocs sejam fundamentalistas, ou mesmo que tenham qualquer religião, e fica difícil apontá-los como braço da Al Qaeda. Mas isso não impede que eles “peguem um avião e joguem no Congresso”, como propôs um senador governista, mais inventivo do que qualquer intelectual.
Já aqueles que preferem o visual clean, nada como a volta do higienismo. E ele está voltando com tudo na esquerda institucional, com suas fórmulas clássicas que parecem não envelhecer. Você pode chamar os black blocs de “parasitas” ou “sanguessugas” que estão se aproveitando das manifestações (para quê, mesmo?) ou qualificá-los de “doença social”, que precisa ser combatida com duros remédios. Sugestão do internauta: “catapora social”, pois é uma doença “epidérmica e superficial” (para dar uma pitada de maringonismo no seu cafezinho)
Não se esqueça de lembrar também que o uso das máscaras é prejudicial aos protestos (o link indicado é de uma republicação, pois o original foi tirado do ar). Elas permitem a infiltração de P2s e criminosos. Antes do uso das máscaras a polícia, coitada, não conseguia infiltrar agentes – como se disfarçar sem a máscara do Guy Fawkes, como? E os criminosos, hoje tão abundantes, não tinham vez. Todos sabem, e os índices demonstram, que não havia criminalidade nas grandes metrópoles brasileiras antes de junho de 2013. Você pode ser inclusive o primeiro a dizer que quando os black blocs quebram os caixas eletrônicos não querem manifestar sua posição anticapitalista, mas sim roubar o dinheiro que está ali dentro –só não descobriram como.
Último argumento que não pode faltar: a violência dos black blocs justifica a violência da Policia Militar contra os manifestantes. Trata-se aqui de uma simples inversão de causa e efeito, qualquer um pode fazer. O documentário Com Vandalismo mostra como nos protestos de junho em Fortaleza, manifestantes pacíficos, inicialmente contrários ao “vandalismo”, mudaram de opinião e abandonaram o grito “sem violência” depois de terem sofrido na pele a violência irracional da Policia Militar. O aparecimento de grupos que se valem da tática black bloc é uma resposta à violência com a qual protestos são habitualmente tratados pela polícia que a ditadura nos deixou. Basta lembrar de 13 de junho, quando não se falava em black bloc, e quando a imprensa foi obrigada a admitir que a repressão da manifestação ocorreu sem motivo algum. Portanto, é importante fazer esquecer tudo isso, e fingir que a violência policial começou por causa dos black blocs e não o contrário.
Mais importante de tudo. Não deixe, em nenhum momento, o seu leitor suspeitar que exista relação entre a violência cotidiana nas periferias e a violência das manifestações. Não deixe seu leitor sequer imaginar que o ódio que por vezes os black blocs ostentam pela polícia possa ser em algum grau motivado pelo desprezo desumano e homicida que essa policia ostenta perante uma parte da população. Não deixe, enfim, seu leitor suspeitar que o espancamento do coronel indefeso possa ter algo a ver com as mortes de Amarildo, Douglas, Jean e tantos outros.
Sobre a questão, na Baderna Midiática:
Violência, mas para quê?
A ideologia do controle
O reverso da repressão
Severamente punidos: a mídia demoniza os black blocs
Toda rotina tem sua violência