Porque não vamos depor no DEIC – ou sobre intimações, inquéritos e investigações

Texto retirado do site do MPL-SP

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Durante 2013, a luta por um transporte efetivamente público sofreu forte repressão no Brasil. Só em São Paulo, durante as manifestações contra o aumento da tarifa, foram presas mais de 300 pessoas. A diferença desse número em relação às cifras oficiais divulgadas pela Polícia, e replicadas pela mídia, se deve principalmente às prisões para averiguação. Sem imputar qualquer crime, a Polícia Militar prendeu e encaminhou para Delegacias de Polícia pessoas por estarem com tinta, cartazes, vinagre e mesmo “por ter cara de manifestante”.
Essa prática ilegal, cotidianamente adotada pela PM nas periferias, foi novamente utilizada na semana de luta pelo passe livre, nos atos dos dias 23 e 25 de outubro, somando mais de 110 pessoas que foram presas sem que se pudesse acusá-las de absolutamente nada. Mais uma vez, a famosa e inconstitucional “prisão para averiguação” fez com que as pessoas presas fossem liberadas ao longo da madrugada, como sempre, após horas submetidas à ilegalidade estatal, a agressões físicas e psicológicas, e a abusos como a revista vexatória.
A repressão operada com esse tipo de intimidação foi aprofundada por uma ação alardeada pelo Governador de São Paulo e orquestrada pelo Ministro da Justiça, em conjunto com o Judiciário, o Ministério Público e a PM que, surpreendentemente, sem qualquer base legal, instaurou um inquérito policial para identificar os manifestantes deste e de diversos outros atos. Um inquérito que sequer possui qualquer pessoa indiciada pela prática de um crime. Os alvos deste inquérito, que já tinham sido presos de forma arbitrária, foram intimados a depor no dia 12 de dezembro de 2013, e aqueles que não compareceram foram reintimados a depor no dia 24 de janeiro de 2014, sob diversas ameaças, dentre elas a de condução coercitiva pela Policia em caso de não comparecimento.
O pretexto para a investigação é identificar adeptos da tática “black bloc”, mas, como fica cada vez mais claro com o desenrolar dos depoimentos, a principal intenção é mapear e intimidar todas aquelas pessoas que lutam por uma vida sem catracas.
As contradições desse processo estão evidentes mesmo dentro do próprio sistema que ele pretende preservar: a figura do inquérito serve para investigar crimes e não pessoas. Nesse inquérito não há a apuração de crime específico algum; as tomadas de declarações se restringem a identificar pessoas – com interrogatórios que remetem a Estados de Exceção – com a intenção de enquadrá-las em um grupo de suspeitos a priori. A seletividade das ações da polícia se repete, mas com outro recorte: junto à criminalização cotidiana da pobreza, visa reprimir as lutas que se colocam contra este sistema opressor.
Enquanto isso, as barbaridades cometidas pelos agentes policiais não são apuradas, sem qualquer aceno de responsabilização ou mesmo de desestruturação da lógica militar que faz de todas e todos que lutam ou resistem às opressões inimigos a serem violados.
O Movimento Passe Livre São Paulo e a Fanfarra do M.A.L. entendem que a existência dessa investigação é a continuação da sistemática violação de direitos das pessoas que já foram presas ilegalmente. A visita de policiais em suas casas e as ameaças verbalizadas nada mais são do que uma intimidação para desmobilizar nossas lutas. Por isso, defendemos o não comparecimento para depoimento, exercendo, dessa forma, o nosso direito constitucional de permanecer em silêncio. Não é admissível que continuemos a legitimar esse tipo de ação repressiva e intimidadora dos de cima, que só busca preservar a ordem que controla e massacra os de baixo.

TODA PRISÃO É UMA PRISÃO POLITICA!
POR UMA VIDA SEM GRADES E SEM CATRACAS!

Movimento Passe Livre – São Paulo (MPL-SP)

Estratégias de segurança!?

Texto publicado no site Carta Maior, escrito por Roberto Brilhante.

Atribuir responsabilidade das agressões ao “descuido” da vítima é uma das formas pelas quais o preconceito contra certas minorias se perpetua na sociedade

Roberto Brilhante

Assim como a Folha de São Paulo, nós da Carta Maior também oferecemos algumas estratégias de segurança a grupos sujeitos a diversos tipos de violência:

– Às mulheres:

1. O uso de camisas largas de mangas longas e calças que não insinuem nenhum tipo de forma aumentam a segurança contra estupradores em potencial. Shorts, vestidos e decotes aguçam o instinto masculino, o que pode fazer com que alguns não “se segurem” e acabem cometendo abusos.

2. Evite sair só: nada de cinema, bar, mercado, parque, ônibus, caminhada: estar por aí sozinha pode dar a entender que você “quer alguma coisa”, o que pode levar a situações constrangedoras.

3. Tomar sorvete, apenas em casa: o ato de tomar um sorvete em locais públicos pode gerar olhares nojentos por parte de estranhos. Se você não quer estragar seu dia por causa disso, não fique tomando sorvete por aí.

– Aos negros:

1. Se quer evitar abordagens policiais, nasça branco. Como isso não é mais possível, siga as dicas de segurança dos próximos itens:

2. Use sempre roupas respeitáveis. Usar camisa social, calça e ter a barba feita são coisas que dão a entender que você está trabalhando e que não é algum marginal flanando pelas ruas vendendo drogas e assaltando as pessoas de bem.

3. Se, ainda assim, as forças militares suspeitarem que você é um problema para a sociedade, aja com cordialidade. Entregue seus documentos, não olhe nos olhos dos policiais, não dê a entender que está tentando decorar a placa da viatura ou ler o nome nas identificações dos pm’s: tudo isso é muito desrespeitoso e pode fazer com que os policiais se sintam ameaçados e acabem reagindo com violência.

4. Se os policiais cometerem qualquer tipo de tortura física e/ou psicológica, mantenha-se tranquilo: quem não deve, não teme.

– Aos ciclistas:

1. Deixe a bike em casa: a via pública está cheia de motoristas que desrespeitam o espaço do ciclista. Mesmo que você respeite o código de trânsito, você é a parte mais fraca e pode acabar caindo embaixo de um caminhão.

– Aos moradores de rua:

1. Dormir com cobertores molhados diminui o risco de que jovens de classe média consigam colocar fogo em você.

– Aos jornalistas:

1. Se você é radialista ou trabalha em jornais de cidades do interior dominadas por latifundiários e grileiros, nada de ficar denunciando crimes das forças políticas locais: você pode acabar suicidado, atropelado, ou assassinado na porta de casa.

2. Evite cobrir manifestações: você é alvo preferencial da polícia, que não gosta que ninguém fique gravando seus abusos de poder.

3. Evite também falar sobre a polícia. Você pode ser sequestrado e ameaçado por pessoas encapuzadas. (caras forças policiais: este meu artigo é apenas uma forma de dar boas dicas de segurança às pessoas que tentam atrapalhar o trabalho de vocês.)

4. Escrever em seu blog artigos contra políticos ou pessoas ligadas ao poder judiciário pode te render multas e até mesmo cadeia. Meça suas palavras.

– Aos homossexuais:

A vocês, a Folha de São Paulo já reproduziu boas dicas no caderno Cotidiano do dia 09/02. Não dê pinta, não ande em lugares públicos sozinho, não tenha nenhum tipo de demonstração de afeto com seu parceiro(a).

Ironias à parte, atribuir parcela da responsabilidade das agressões ao “descuido” da vítima é uma das formas pelas quais o preconceito contra certos grupos socialmente minoritários se perpetua na sociedade. A violência que alguns homossexuais têm sofrido por parte de grupos intolerantes e de assaltantes não se compara à violência simbólica que sofrem em seus cotidianos. Afirmar que uma maneira de ser diferente daquela com que se sentem bem é uma “estratégia de segurança” não é nada menos do que uma forma de violência simbólica bastante grave.

É nossa sociedade que tem que criar mecanismos para proteger estes grupos, e não oferecer a eles “estratégias de segurança”. Usar as roupas que se tem vontade, demonstrar afeto da forma que convier e poder andar sozinho são pilares fundamentais de nossa liberdade. Ao dizer a um negro, ou a uma mulher, ou a um homossexual que seus modos contribuem para a violência que sofrem é reafirmar os preconceitos mais enraizados de nossa sociedade patriarcal, racista e heteronormativa.

O desrespeito aos direitos humanos e a promoção da barbárie que a apresentadora Rachel Shereazade e o deputado Jair Bolsonaro incitam publicamente geram reações de indignação por parte de diversos setores da sociedade. E é necessário que o conservadorismo de rodapé disfarçado de notícia também gere este tipo de reação.  Sensacionalizar a violência contra os homossexuais afirmando que eles têm se escondido como “estratégia de segurança” é mais uma forma de retroalimentar a violência simbólica que estes grupos sofrem no dia-a-dia.

O mundo assombrado de Rachel Sheherazade

Texto retirado do site Carta Capital, escrito por Matheus Pichonelli

Deram uma página em branco para apresentadora e ela manifestou tudo o que conhece sobre o Brasil: nada

Em entrevista recente à coluna Mônica Bergamo, na Folha de S.Paulo, a apresentadora do SBT Rachel Sheherazade contou ser neurótica com a violência urbana, sobretudo porque noticia diariamente “tudo o que há de ruim”. Por isso, relatou, só sai de casa para ir ao trabalho. De vez em quando vai ao shopping ou ao teatro. Sempre de carro blindado.

Reprodução Folha

O mundo que ela e certa casta de detentores da verdade noticiam, portanto, é um mundo projetado. Ruim, decerto, mas desenhado sem conhecimento de causa. É uma praga que corrói o jornalismo: quem se propõe a narrar diariamente os fatos não conhece os fatos. Não anda nas ruas. Não circula. Não sai da bolha. E, do alto de um mirante, passa a emitir ordens sobre como é a vida de sua audiência e/ou leitores, estes que eles mesmos mal sabem quem são ou como vivem.

Sobre esta espécie de “editoria de piá criado em prédio”, tínhamos uma sentença já à época de faculdade: podem enganar até seus chefes, mas deem uma folha em branco a eles para escrever sobre qualquer assunto e de lá não sairá nada.

Pois então. Na terça-feira 11, a mesma Folha de S.Paulo deu vida a esta alegoria. Espaço para especialistas, estudiosos e pesquisadores, a seção Tendências e Debates deu uma folha em branco para Sheherazade demonstrar tudo o que sabe sobre segurança pública, direitos humanos e sobre o seu país que, dias atrás, ela confessou se limitar da casa ao trabalho e, esporadicamente, da casa para o shopping. É nessa trajetória que ela recria a imagem de um país jorrado em sangue: sem policiamento, com bandidos à solta, armas em punho, a cometer todas as atrocidades contra todo mundo que é de bem. Pessoas que, segundo sua peça literária publicada em forma de artigo, escolheram ser criminosas e hoje recebem a solidariedade e pena de ONGs e grupos de direitos humanos e por isso, e só por isso, têm carta-branca para instalar o real estado de natureza em um país de impunidades.

Em resumo, deram uma página em branco para Sheherazade e ela manifestou tudo o que conhece sobre o Brasil: nada. Neste espaço, ela voltou a dizer que os criminosos estão soltos, que o Brasil é um dos países mais violentos do planeta, que a lei é frágil, que os menores infratores estão protegidos e que só quem agride animais vai para a cadeia. Neste universo, diz identificar nitidamente o bem e o mal: o bem somos nós, eu, você, cidadãos que pagam impostos e têm o direito à vida. Os maus são os criminosos comuns protegidos por ONGs e pelo Estado que atrapalham nossos caminhos em direção a uma vida de bem: casa, trabalho, shopping.

De fato, somos um país violento. Mas essa violência é mais difusa do que supõe sua folha em branco. Por isso ela e seus seguidores não conseguem reconhecer que parte da nossa violência brota de onde menos se espera. É reproduzida, por exemplo, por grupos que ela diz compreender que ajam ao arrepio da lei. Se a ação destes grupos é compreensível, diante da barbárie que ela jura estar instalada, estamos prestes a aceitar que encapuzados organizados saiam às ruas, diante da paralisia que ela jura estar encerrada à polícia, para colocar ordem no estado. Assim, saímos legitimados a espancar não só o “trombadinha”, como também a prostituta, o andarilho, o casal gay. Ou seja: façam exatamente o que fazem no Brasil há séculos.

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A Fabricação do Vício

Texto retirado do site Libertas e escrito pelo Professor Henrique Carneiro.

A história de certos conceitos médicos é essencialmente política, ou seja, ligada ao poder e aos interesses materiais de instituições, classes, camadas e grupos sociais . Talvez o conceito médico mais controverso do último século e meio seja o de “dependência” de drogas. Este é o termo hoje adotado como o mais indicado, de acordo a uma nomenclatura normatizada internacionalmente pela OMS, mas antes dele houveram outros termos análogos e igualmente oficiais em suas épocas, tais como “adição”, “hábito”, “transtornos da vontade”, “insanidade moral”.

A construção política dos conceitos conecta o Estado e a Medicina, pois a “história social da linguagem é basicamente uma questão de poder” (Burke, 1987). Existem conceitos investidos de alto poder simbólico, conceitos “tótens”, como escreve Berridge (1994). A demonização do “drogado” e a construção de um significado suposto para o conceito “droga” alcança na época contemporânea um auge inédito. Um fantasma ronda o mundo, o fantasma da droga, alçado à condição de pior dos flagelos da humanidade.

Afinal, o que é a dependência de drogas? Hábito, vício, necessidade, desejo, vontade. Na definição atualmente aceita, o “abuso” se distinguiria do “uso” por produzir um quadro de tolerância, síndrome de abstinência, compulsividade, desestruturação da vida pessoal e persistência no consumo apesar dos efeitos nocivos .

O surgimento deste conceito, assim como deste personagem, é simultâneo de uma série de outros, como o “homossexual”, o “alienado”, o “erotômano” ou “ninfomaníaca”, o “onanista”. Antes desse momento impreciso, que toma seus contornos no início do século XIX, beber demasiado não era uma doença. No máximo, uma prova de mau caráter ou de falta de auto-controle. A embriaguez não suprimia a vontade, aliás, não se distinguia entre desejo e vontade de beber, não havia um vocabulário que expressasse a existência de uma compulsão, de uma escravidão à bebida ou alguma outra droga. As exceções são alguns relatos sobre o uso do ópio no Oriente no século XVI e, a partir do século XVIII, os  primeiros autores (J. Jones, 1701; Lettson, 1787; S. Crumpe, 1793) que passam a descrever “uma perda de controle voluntária do hábito”, que será mais tarde chamada de “abuso” (Berridge, 1994). Mas acima de tudo, o uso do álcool e outras drogas era visto como uma prática condenável em muitos aspectos, e virtuosa em outros, mas jamais como uma doença.

A doença do vício será uma construção do século XIX. A concepção da embriaguez como doença pode ser datada de 1804, quando Thomas Trotter publicou o Essay Medical Philosophical and Chemical on Drunkenness, que seria considerado um marco na “descoberta” (ou na criação?) de uma nova entidade nosográfica na medicina. Para Trotter, o hábito da embriaguez seria “uma doença da mente”.

Benjamin Rush, nos Estados Unidos, já em 1791, relacionara alcoolismo e masturbação como “transtornos da vontade”, desencadeando contra ambos uma campanha médica e psiquiátrica. Na França, Esquirol tipificou a ebriedade como “monomania” e “insanidade moral com paralisia da vontade”.

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