Sobre a falta de anarquia na USP

Este texto é uma resposta a dois outros textos publicados no USP Livre. Leia-os aqui:

Texto de Rafael Dantas do PCO: http://usplivre.files.wordpress.com/2012/05/jornal-usp-livre-53.pdf          http://usplivre.org.br/2012/05/17/opiniao-falta-um-pouco-de-anarquia-na-usp/

Resposta anônima: http://usplivre.org.br/2012/05/21/opiniao-sobre-o-texto-falta-um-pouco-de-anarquia-na-usp/

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Assim que li o texto de Rafael Dantas sobre a escassez da anarquia na USP, pensei de imediato em escrever uma resposta. Todavia, uma resposta duplamente anonima sairia no USP Livre poucos dias depois. Esta me contemplou em diversos aspectos, contudo, não em tudo, por isto mantive a ideia de escrever esta resposta.

Acredito que é importante começar remetendo-me – mesmo que levemente – a diferenciação entre anarquia e anarquismo feita por Errico Malatesta. Segundo este a anarquia “é a sociedade organizada sem autoridade”, ou seja, é um ideal de sociedade onde não haja nenhum tipo de dominação ou opressão. Já o anarquismo deve ser entendido como uma ideologia política (compreendendo ideologia não na sua definição marxista como falsificação da realidade, mas sim como conjunto de aspirações, concepções e posições orientadas para um objetivo finalista) originada no século XIX no seio das classes dominadas pelo capitalismo, e que tem sua primeira formação mais consolidada no setor libertário da AIT – do qual faziam parte James Guillaume, Mikhail Bakunin entre outros. Apesar de ser possível identificar elementos e aspirações à anarquia em diferentes momentos e pensamentos da história, a origem do anarquismo está estritamente relacionado com a procura de respostas e de oposição à ascensão do capitalismo e de seus métodos de dominação – sejam eles econômicos, políticos, jurídico-militares, ideológicos etc – na sociedade moderna. O anarquismo é, desde sua gênese, uma das correntes revolucionárias do socialismo.

Entretanto, diferentes e divergentes compreensões do como é possível esta transformação social revolucionária, deram origem a diferentes macroestratégias anarquistas. De maneira bastante tosca e consideravelmente anacrônica, é possível dividir estas em dois grupos maiores: as estrategias de massa, e as insurrecionalistas. O primeiro grupo entende que através do fortalecimento da auto-organização dos setores dominados e dos aspectos libertários destes, que se faz possível uma transformação social revolucionária que destrua o Estado-nação e o capital, e reorganize a sociedade com base na autogestão, no federalismo e na horizontalidade. Alguns exemplos de estrategias de massa são: o anarco-coletivismo, o anarco-comunismo, o anarco-sindicalismo, o sindicalismo revolucionário, e o contemporâneo anarquismo especifista (o qual eu reivindico, apesar de atualmente não participar de nenhuma organização anarquista). Já o segundo grupo entende que ações radicalizadas e violentas podem, por si mesmas, levar a uma escalada da polarização de classes na sociedade, e despertar a revolta nos oprimidos – uma concepção que se aproxima daquilo que viria a ser conhecido na década de 60 como foquismo. Importante colocar que, excetuando talvez a década de 80 do século XIX, de maneira geral as estrategias de massa foram hegemônicas entre os anarquistas.

Desta maneira, é possível ver que boa parte daquilo que Rafael Dantas escreve, emana uma dose de ignorância e senso comum sobre o que é e o que propõe o anarquismo. Para a esmagadora maioria daqueles que reivindicam e reivindicaram esta luta, este não tem como “sua inclinação primária reagir à violência com violência”. Os anarquistas não são e não foram tão estúpidos assim – estigmatizar desta maneira outras concepções não passa duma artimanha política bastante comum e antiga. Concordo assim com o ácido sarcasmo do escritor anonimo ao dizer “se você quer tanto praticar essa SUA DEFINIÇÃO de anarquia, faça você mesmo!”. Contudo, parece-me que o próprio anarquista anonimo também reproduz alguns estigmas e preconceitos impostos aos anarquistas como um todo; o principal e mais gritante, sem dúvidas, é a dupla formada pela combinação da prepotência com o sectarismo. Deixe-me explicar.

Sem dúvidas existem muitas e muitas divergências insuperáveis entre marxistas e anarquistas – desde a segunda metade do século XIX isto é sabido. Todavia, não me parece nem politicamente saudável, tampouco compatível com os ideais acratas, tomar esta arrogante postura – infelizmente mais comum do que eu gostaria – de dono da verdade: gritar do alto de alguma torre verdades e denuncias eternas. Nós anarquistas temos nossas concepções, mas é extremamente autoritário nós colocarmos como porta-bandeiras da verdadeira revolução. Até mesmo porque, igualmente não há dúvidas que existem também pontos de convergências entre a corrente libertária e autoritária, e é somente uma tolice sectária típica de individualistas não tentar explorar estas convergências afim de fortalecermos o nosso projeto – se estamos tão convencidos das nossas posições anarquistas, não é melhor, afim de as fortalecer, colocá-las em prática, no lugar de as colocar tão somente em sermões? Se estamos tão convencidos das nossas posições, qual é o medo então de atuarmos juntos – no que é possível – com outros setores? É importante lembrar que as ocupações do ano passado, por exemplo, foram construídas também por diversos grupos trotskistas – e mesmo os grupos que hoje ocupam o DCE e foram contra as mobilizações uspianas do ano passado, participaram, por exemplo, da jornada de lutas contra o aumento e pelo passe livre de 2011. É necessário humildade e autocrítica para reconhecer que os anarquistas sozinhos não estão suficientemente fortalecidos e organizados para bancar as lutas sozinhos. Falta anarquismo na USP, e acredito que para isto ser resolvido, é necessário muito mais do que denuncias e repisadas marcações históricas de posições. Urge arrancarmos o anarquismo do purista altar onde ele fora colocado, e o trazermos de volta para o seio das lutas. Urge sairmos da declaração de princípios, e ousarmos errar.

E é nesse sentido que me empenho na construção da tendência libertária Rizoma. Gostaria, por fim, de discorrer um pouco sobre esta.

Primeiramente é importante colocar que o Rizoma é uma tendência em construção. Uma proposta que possuí somente cerca de três meses de amadurecimento. E, até mesmo por isto, o que escreverei aqui sobre esta será de um ponto de vista bastante pessoal – todavia entendo que a nossa prática, nossos textos e panfletos, e os termos que compõem o nosso nome, dizem algo sobre a nossa proposta. Vamos a estes:

Começando do final, escolhemos para definir a nossa tendência os adjetivos libertária e autônoma – o que expressa de cerca maneira uma redundância enfática, já que entendo que a ideia da autonomia está necessariamente contida no termo libertário. Este, por sua vez, remete a tradição libertária do socialismo, e traz consigo os princípios que sintetizam práticas e orientações, como por exemplo: ação direta como método de luta, autogestão, democracia direta, apartidarismo, autonomia, solidariedade de classes etc. Para participar do Rizoma não se faz necessário ser anarquista, tão somente concordar com estes princípios. O que significa que o Rizoma não é uma organização anarquista, apesar de pessoas que reivindicam esta concepção política participarem desta. Chegamos aqui no outro termo escolhido para definir o Rizoma: tendência. Por quê tendência? Porque entendemos como importante organizar este setor que possuí afinidade com as práticas e princípios libertários afim de os fortalecer dentro do movimento estudantil da USP. Porque entendemos que devido a dispersão e a falta de organização, os libertários acabam muitas vezes por se verem forçados a ficar na trilha de outros grupos com interesses e estrategias diversos – mesmo estando em grande número e numa conjuntura favorável. E também porque acreditamos que através destas práticas, o movimento estudantil da USP pode se fortalecer, e contribuir para a construção tanto duma universidade diferente, quanto duma sociedade diferente.

Esta escolha por atuarmos no movimento estudantil da USP não deve ser lida nem como um desprezo ao que acontece fora da “bolha uspiana”, tampouco como uma defesa do isolamento da universidade – como sugere o texto duplamente anonimo – mas sim como um esforço de trazer as práticas libertárias para a realidade. Muitos camaradas meus anarquistas atuam prioritariamente em outros movimentos, mesmo estudando na USP, pois consideram que seus esforços são mais válidos nestes movimentos – posição a qual eu muito respeito. Eu mesmo e boa parte do pessoal do Rizoma também costumamos participar e construir outras lutas fora da universidade – como por exemplo as jornadas pelo passe livre, ou a marcha da maconha e a marcha das vadias. O Rizoma, mas não só como muitas outras pessoas e grupos, acha importante uma aproximação com a comunidade da São Remo, especialmente agora com a ameaça de reurbanização, e tem se dedicado a tal. Entendo que democracia na USP é muito mais colocar a comunidade da Remo e a população pobre dentro da Universidade, expulsar as fundações, o Santander, a Avon e outras empresas, do que realizarmos eleições diretas pra reitor.

Nos resta por último, o próprio nome do grupo, Rizoma. Este vem da compreensão que as relações sociais se estruturam a partir da disputa de poder entre diferentes grupos organizados, formando estruturas rizomáticas. Na escala da sociedade como um todo, se destacam duas estruturas rizomáticas: uma dos grupos que exercem relação de dominação e opressão (capitalistas industriais ou latifundiários, estatistas, militares etc.), e outra dos grupos que resistem a estas relações (movimentos sociais, sindicais, estudantis, populares). A escolha do nosso nome expressa a intenção de fortalecermos a Resistência. Entendo como absolutamente essencial para o fortalecimento da luta e para avançarmos em nossas reivindicações a construção e o fortalecimento deste setor, que é chamado de Poder Popular – ou seja o fortalecimento dos movimentos sociais (e das práticas libertárias nestes) e principalmente dos laços de solidariedade entre estes. No dia em que o Movimento Estudantil fizer fortes greves e ocupações tão somente em solidariedade a outros setores da sociedade, estaremos muito mais próximos dos nossos objetivos. Já pensaram se pudêssemos ter parado a USP em apoio à Pinheirinho? Ou mesmo aos metroviários…

Hugo Scabello, militante do Rizoma – Tendência Libertária e Autônoma

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Um Comentário

  1. Hugo, vc não ia escrever uma síntese para publicarmos no usp livre impresso? Estamos aguardando! abs, Rafael

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