Vozes Libertárias: A história relegada do anarquismo em Porto Rico

By A.N.A. on 30 de agosto de 2013
Por Joel Cintrón Arbasetti

“E você acredita que existiram anarquistas em Porto Rico?”. A resposta a esta pergunta, feita por um professor zombador a um estudante de mestrado em história, não foi um simples sim ou “é claro!”, mas uma tese de mais de 200 páginas que logo se tornou o livro Voces Libertarias: Los orígenes del anarquismo en Puerto Rico (Vozes Libertárias: As origens do anarquismo em Porto Rico). O autor desta pesquisa recém publicada, Jorell A. Meléndez Badillo, que se descreve como “pesquisador independente, professor de profissão, anarquista por convicção e punk rocker por diversão”, responde à pergunta do professor incrédulo ou cínico através do estudo das “ideias progressistas” do proletariado em Porto Rico.

Partindo “da necessidade de imaginarmos outro tipo de história”, Meléndez assume uma perspectiva historiográfica crítica a partir de uma postura interdisciplinar para identificar o papel que teve o anarquismo nas entranhas do movimento operário, desde os primeiros fermentos organizativos de finais do século XIX até a aparição dos primeiros sindicatos em princípios do século XX. Para esta tarefa Meléndez recorre a imprensa operária da época, onde encontra declarações contundentes sobre o anarquismo como: “Sou (não se aterrorizem) [sic] um anarquista. Sinto germinar ou bater em meu coração, com a permissão dos lacaios léxicos, os princípios redentores de Bakunin [sic] e Malato, Reclus e Graves…”. Nesta citação do periódico local El Combate de 10 de outubro de 1910, não apenas alguém se declara anarquista, mas nomeia importantes libertários europeus, como o russo Mikhail Bakunin, o italiano Charles Malato, o francês Jacques Élisée Reclus e o também francês Jean Grave.

Em Vozes Libertárias são revistos ainda os poucos textos acadêmicos que de alguma forma se aproximam do tema do anarquismo em Porto Rico, como Modernidad y Resistencia de Carmen Centeno Añeses, os trabalhos sobre Luisa Capetillo realizados pela jornalista Norma Valle e El Derribo de las Murallas de San Juan, de Rubén Dávila Santiago, entre outros. Partindo destes textos, de trechos de periódicos, informes policiais, boletins, cartas e obras literárias, Meléndez tece os traços que dão conta da existência de discursos e práticas sociais de acordo com o ideário anarquista ou libertário em Porto Rico, talvez a menos conhecida e portanto demonizada, distorcida e temida corrente de pensamento radical.

Nesta pesquisa também são abordadas as razões da distorção da palavra anarquia, que no mundo material se traduziu em uma invisibilização do verdadeiro conhecimento e dos discursos produzidos por esta linha de pensamento, tanto no interior de grupos políticos, na academia e em manifestações da cultura popular. Por isso Meléndez se encarrega de identificar as formas e lugares concretos onde a palavra anarquia foi utilizada com significado pejorativo, distorção que chega até nossos dias, como se vê em manchetes de jornais como Vocero e El Nuevo Día de 2010, citados em Vozes Libertárias:

“El Vocero escrevia, em relação ao processo grevista que atravessou a Universidade de Porto Rico, que ‘A situação que a universidade atravessa… já passou de crise a anarquia e ingovernabilidade’. Da mesma forma o Nuevo Día utilizou de manchete ‘Anarquia na escola de Barranquitas’ para um artigo sobre alguns distúrbios em um centro de estudos do referido município”.

Mas contrário ao significado que comumente se dá à palavra anarquia, sempre associada a desordem e ausência de organização, o certo é que o anarquismo, como explica o filósofo argentino Ángel Cappelletti, somente se opõe a qualquer organização artificial, imposta e sobretudo, vertical. E que organização cumpre mais com estas características do que o Estado? Portanto, o anarquismo, com todas as vertentes que existem em seu interior (coletivismo, cooperativismo, comunismo…) pode ser explicado de forma extremamente resumida e simples como a ideia de que o governo ou o poder político esteja na sociedade, organizada de forma orgânica segundo os princípios de solidariedade e autogestão e que não haja um coágulo de poder concentrado, como o são hoje em dia o Estado e suas instituições de poder. Daí o que divide anarquistas e marxistas (socialistas e comunistas), pois estes últimos acreditam que o Estado, antes de desaparecer, deve funcionar como agente regulador e distribuidor das riquezas, enquanto os e as anarquistas propõem que o primeiro passo da revolução social, uma vez organizada, deve ser a abolição total da estrutura estatal.

Portanto, em uma história sobre o anarquismo era inevitável tocar no tema destas diferenças que marcaram de forma profunda o desenvolvimento do ideal anarquista em nível internacional. Isto também serve para compreender o desprezo que tem sofrido o anarquismo na arena política. Para cumprir com esta tarefa, Meléndez remonta as velhas disputas ideológicas entre marxistas e anarquistas suscitadas na Associação Internacional de Trabalhadores fundada na Europa no século XIX. No caso de Porto Rico, explica como as contradições das primeiras organizações operárias, como a Federação Livre de Trabalhadores e sua posterior relação com a American Federation of Labor (Federação Americana do Trabalho dos Estados Unidos), vão isolando as “incipientes tendências anarquistas”, cuja influência mais direta era, segundo o autor, o anarcosindicalismo espanhol.

Sobre o estudo do anarquismo na academia, Meléndez explica que “o discurso marxista conseguiu hegemonizar o pensamento de esquerda dentro das aulas acadêmicas desde a década de 1960, o que poderia explicar superficialmente o desinteresse pelo anarquismo”. Meléndez também recorre a palavras de David Graeber e menciona que o marxismo “é, depois de tudo, provavelmente o único movimento social que foi inventado por um homem que apresentou uma dissertação de doutorado; e sempre teve algo em seu espírito que consegue se enquadrar com a academia”. Meléndez acrescenta que “esta hegemonização do marxismo na academia deixou de lado o papel do anarquismo dentro da história local…”. A isto se soma a repressão estatal e o rechaço social que em geral entorpecem o desenvolvimento das ideias radicais e revolucionárias em qualquer parte do mundo.

No epílogo desta pesquisa, Meléndez menciona que a partir da segunda metade do século XX não existe documentação historiográfica sobre atividade anarquista em Porto Rico. Não obstante, declara que é “demasiado ingênuo, e nos parece um tanto determinista, pensar que simplesmente desapareceu por completo”. Portanto, o desafio e o percurso que resta a se realizar é a continuação desta história recente, como quando em 2010, à sombra da onda neoliberal que ainda nos afeta, viu um ressurgir encarnado no grupo anarquista Acción Libertaria, fundado após a greve de 60 dias na Universidade de Porto Rico.

Sobre o status atual do anarquismo como prática social e como área de estudo acadêmico, Meléndez explica que “com a queda do bloco socialista, junto a uma gama de eventos como o levante zapatista em 1994 e os acontecimentos em Seattle em 1999, foi sendo revisto o enfoque do que representava o anarquismo nos circuitos acadêmicos ocidentais. Agora ressurge como um tema sério de estudo a partir de diferentes posturas interdisciplinares”.

Seguindo a ética do D.I.Y (Do It Yourself), a publicação de Vozes Libertarias não conta com uma editora, foi autogerida e financiada com donativos solicitados por meio do portal Indigogo.com e pode ser obtida nas diferentes livrarias através dos portais da AK Press e Plan it X. Esta forma de agir, de acordo com os princípios anarquistas, não é de se estranhar para Jorell Meléndez, que está há uma década ativo como vocalista da banda Anti-Sociales na cena punk local, onde a autogestão é a única forma de produzir e sobreviver. Músico, pesquisador e professor, o autor desta pesquisa ainda é membro do Coletivo Autónomo CCC, um centro social e infoshop localizado na avenida Ponce de León em Santurce.

Assim, o professor de história já tem aqui sua resposta: existiram e existem anarquistas em Porto Rico, como se comprova em Vozes Libertárias. Pois mais além da possibilidade ou não de sua meta final, a abolição do Estado, o anarquismo é praticado nas “zonas autônomas temporárias”, como chama Hakim Bey a estes espaços que de alguma maneira escapam das garras da ordem estabelecida ou que propõem práticas contrárias às lógicas de mercado capitalista e da burocracia estatal. Ou como expõe Pierre Joseph Proudhon, um dos pais do anarquismo citado por Meléndez Badillo em seu livro:

“Abaixo do aparato do governo, sob a sombra de suas instituições políticas, a sociedade foi cautelosa e silenciosamente produzindo sua própria organização, criando para si mesma uma nova ordem na qual expressou sua vitalidade e autonomia”.

Tradução > Anarcopunk.org

Vídeo da apresentação do livro “Voces libertarias: Orígenes del anarquismo en Puerto Rico” em 21 de março de 2013, na Libros AC, em Santurce, Porto Rico:

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