Vagão para mulheres, sociedade para homens

Texto muito bom, retirado do Blog Café Feminista: http://cafefeminista.wordpress.com/2013/07/01/vagao-para-mulheres-sociedade-para-homens/#more-6

Está chegando para votação no plenário brasileiro mais um projeto de lei que diz respeito diretamente a nós, mulheres. O PL 341/2005, de autoria do então deputado Geraldo Vinholi (PSDB), obriga que as empresas tenham espaço somente para mulheres durante os horários de pico do transporte público. À primeira vista, seria possível imaginar que o projeto foi concebido por uma feminista, já que propõe nos “proteger” da rotina diária dos abusos sexuais no transporte público lotado. Essa é uma realidade cruel que atinge principalmente as mulheres de classe baixa usuárias dos trens, ônibus e metrôs em um sistema de transporte precarizado. Quem é mulher conhece a sensação de entrar no vagão lotado e, além de suportar o aperto, permanecer alerta a qualquer movimento estranho que possa indicar uma tentativa de abuso. É com horror que nós aprendemos muito cedo a estarmos em constante vigilância contra agressores em potencial, que, ironicamente, enfrentam a mesma dura rotina e ainda se aproveitam da situação para cometer os abusos.

Mas basta um olhar mais atento para perceber o objetivo problemático dessa medida: “Proteger as mulheres indefesas dos homens”. Dessa forma, estamos supondo e legitimando a ideia de que homens são sexualmente incontroláveis. Pior, estamos tentando solucionar o problema isolando as mulheres ao invés de promover o debate entre todxs. Ainda que pudéssemos considerar a lei pela ótica da medida paliativa, na prática, não são todas as mulheres que vão conseguir embarcar nesses vagões, então, teoricamente, todas que escolherem os vagões mistos serão consideradas ainda mais “vulneráveis”. Isso naturaliza o pressuposto de que todo homem é um agressor sexual em potencial e toda mulher uma vítima, um verdadeiro tiro no pé. É isso mesmo que queremos? Isolar mulheres como presas incapazes de se defender e reforçar o estigma do homem predador?

Há quem aponte a superlotação como responsável pelo problema e alegue que a pauta do abuso sexual contra mulheres está incluída na luta por estatização e melhoria dos transportes – em grande discussão com a recente onda de protestos. Porra, é claro que um transporte precarizado e ambiente extremamente lotado facilitam a ação de agressor, mas precisamos buscar a raiz do problema e deixar de secundarizar algo tão grave que é a violência sexual. A noção patriarcal de que homens são essencialmente predadores sexuais que buscam tomar o acesso aos corpos das mulheres, naturalmente subordinadas e vulneráveis quando ocupam os espaços públicos, deve ser amplamente combatida em toda a sociedade. Uma medida tão rasa e pontual como esse projeto de lei é mais um mecanismo falho do Estado – o mesmo que legitima tantas outras formas de violência contra as mulheres – que não leva em consideração as relações de poder desiguais entre homens e mulheres que produzem violência de gênero em toda a sociedade.

“Conceber relações interpessoais separadamente da estrutura de classes representa visão dualista, que não contribui para esclarecer porque a sociedade comporta violência  intrafamiliar, doméstica, contra mulheres e de gênero. […] Sob pena de se perder a visão da sociedade como totalidade, não se podem separar relações interpessoais e estruturais. […] a maior contribuição de corrente expressiva do feminismo tem sido o ataque às análises dualistas, tão marcantes na ciência dos homens.”

Heleieth Saffioti – Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero

A solução do abuso sexual no transporte público é muito mais complexa do que o projeto coloca, este é apenas mais um cenário onde o patriarcado se mostra. Se o machismo não for confrontado, em todos os níveis, não adianta nada. Campanhas massivas como aquela veiculada no Equador contra o assédio nas ruas são mais eficazes do que separar e acirrar a desigualdade de gênero, é preciso colocar a discussão nas ruas e nos movimentos, expor a atitude dos homens, desconstruir a imagem do predador sexual e fortalecer a auto-defesa das mulheres. Um exemplo icônico de como a violência contra a mulher tem sido tratada é aquela “bela” campanha “Homem de verdade não bate em mulher”, veiculada no metrô de São Paulo, com machões das artes marciais do tipo Minotauro e Anderson Silva posando ao lado da pérola. É absurdo porque reafirma a virilidade, como se o “homem de verdade”, “homem honrado”, não pudesse ter atitudes violentas contra as mulheres, sob pena de se tornar um “falso homem”. Mas a própria virilidade, a própria imagem do macho é sobre violência. Se não for física, será sexual, psicológica, patrimonial ou o que quer que seja, e verá na mulher uma figura de inferioridade passível dessa violência. É o próprio papel do homem que precisamos desconstruir, o ideal masculino da dominação e controle através da força.

“a violência é o modo fundamental de regulação das relações sociais entre os sexos (…) ela regula, tanto nos espaços públicos quanto nos espaços privados, as formas de dominação dos homens sobre as mulheres. Seu caráter central encontra sua representação em um conjunto de expressões simbólicas. Algumas são emblematizadas de maneira fálica, associando, assim, violência e masculino, outras são inscritas no corpo.”

Daniel Welzer-Lang – Les Hommes Violents

Determinar que um espaço público seguro para mulheres deve ser livre da presença de homens é assumir a derrota para o patriarcado, é colocar sobre elas novamente a responsabilidade de se protegerem ao invés de coibir a ação dos agressores. A ideia é “coibir as oportunidades de assédio sexual contra as passageiras”, diz o deputado Geraldo Vinholi (PDT), ou seja, mulher no espaço público = oportunidade de assédio sexual. E vai continuar sendo para todas aquelas que não conseguirem embarcar no “vagão rosa”, nos tres, metrôs, ônibus, ruas, parques, praças e até entro de casa, onde inevitavelmente a outra metade da humanidade designada no nascimento enquanto “homem” estará à espreita. Assim, o monopólio da violência permanece na mão dos homens e as mulheres continuam a ser tratadas como vítimas e passivas, que precisam ser guardadas em uma caixinha longe dos algozes.

Como feministas, não deveríamos esperar outra medida de um Estado paternalista. Faz mais sentido se opor a esse projeto e concentrar esforços em inserir a pauta feminista nos movimentos pelo transporte público de qualidade, promover a auto-defesa e problematizar a violência cotidiana nos espaços auto-organizados das mulheres e levar a discussão aos espaços mistos, para que os homens debatam a questão e compreendam como também são estigmatizados com esse tipo de proposta. Individualmente, podemos nos empoderar para responder com violência ao abuso sexual no transporte, expor os agressores e mostrar que somos capazes de defender nosso direito de ir e vir ao invés de permanecermos acuadas. Não me interessa aceitar de cabeça baixa uma sociedade em que não tenho minha integridade física respeitada por ter sido designada mulher. Já basta ter sido ensinada a temer os homens, a não andar só, a premeditar abuso e estupro, não é agora que eu vou admitir me refugiar em pleno transporte público e perpetuar o ciclo de medo e submissão. Reivindicamos livre acesso e respeito em todos os espaços públicos para todas as mulheres, em plena convivência com os homens, porque a luta pelo transporte de qualidade e pela mobilidade urbana também é necessariamente uma questão feminista.

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