A Tirania das Organizações Sem Estrutura

Texto de formação

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Artigo de Jo Freeman, 1970

Durante os anos em que o movimento feminista se formava, dava-se grande ênfase ao que se chamava de grupos sem estrutura, sem liderança, como a forma principal do movimento. Essa idéia tinha origem numa reação natural contra a sociedade superestruturada na qual a maioria de nós se encontrava, no controle inevitável que isso dava a outros sobre nossas vidas e no elitismo persistente da esquerda e de grupos similares entre aqueles que supostamente combatiam essa superestruturação.

A idéia da “ausência de estrutura”, no entanto, passou de uma oposição saudável a essas tendências a um dogma. A idéia é tão pouco examinada quanto o termo é utilizado, mas tornou-se uma parte intrínseca e inquestionada da ideologia feminista. Para o desenvolvimento inicial do movimento, isso não importava muito. Ele definiu inicialmente seu método principal como a conscientização e o “grupo de discussão sem estrutura” era um meio excelente para esse fim. Sua flexibilidade e informalidade encorajavam a participação na discussão e o ambiente freqüentemente receptivo promovia a compreensão pessoal. Se nada de mais concreto que a compreensão pessoal resultasse desses grupos, isso não importava muito, porque seu propósito, na verdade, não ia além disso.

Os problemas básicos não apareceram até que grupos de discussão individuais exauriram as potencialidades da conscientização e decidiram que queriam fazer algo mais específico. Neste ponto, eles normalmente se atrapalhavam porque a maioria dos grupos não estava disposta a mudar sua estrutura na medida em que mudava sua tarefa. As mulheres tinham comprado totalmente a idéia de “ausência de estrutura” sem perceber as limitações de seus usos. As pessoas tentavam usar o grupo “sem estrutura” e a reunião informal para fins para os quais não eram apropriados, acreditando cegamente que quaisquer outros meios seriam simplesmente opressivos.

Se o movimento quiser avançar além desses estágios elementares de desenvolvimento, ele deverá livrar-se de alguns de seus preconceitos sobre organização e estrutura. Nenhum dos dois tem nada de intrinsecamente ruim. Eles podem e freqüentemente são mau usados, mas rejeitá-los de antemão porque são mau usados é nos negar as ferramentas necessárias ao nosso desenvolvimento ulterior. Precisamos entender porque a “ausência de estrutura” não funciona.

Estruturas formais e informais

Ao contrário do que gostaríamos de acreditar, não existe algo como um grupo “sem estrutura”. Qualquer grupo de pessoas de qualquer natureza, reunindo-se por qualquer período de tempo, para qualquer propósito, inevitavelmente estruturar-se-á de algum modo. A estrutura pode ser flexível, pode variar com o tempo, pode distribuir entre os membros do grupo as tarefas, o poder e os recursos de forma igual ou desigual. Mas ela será formada a despeito das habilidades, personalidades e intenções das pessoas envolvidas. O simples fato de que somos indivíduos com aptidões, predisposições e experiências diferentes torna isso inevitável. Apenas se nos recusamos a nos relacionar ou interagir em qualquer base poderemos nos aproximar da “ausência de estrutura” e essa não é a natureza de um grupo humano.

Isso significa que lutar por um grupo “sem estrutura” é tão útil e tão ilusório quanto almejar uma reportagem “objetiva”, uma ciência social “desprovida de valores” ou uma economia “livre”. Um grupo de “laissez-faire” é quase tão realista quanto uma sociedade de “laissez-faire”; a idéia se torna uma dissimulação para que o forte ou o afortunado estabeleça uma hegemonia inquestionada sobre os outros. Essa hegemonia pode facilmente ser estabelecida porque a idéia da “ausência de estrutura” não impede a formação de estruturas informais, apenas de formais. Da mesma forma, a filosofia do “laissez-faire” não impedia os economicamente poderosos de estabelecer controle sobre os salários, preços e a distribuição dos bens; ela apenas impedia o governo de fazê-lo. Assim, a “ausência de estrutura” torna-se uma forma de mascarar o poder e no movimento feminista é normalmente defendida com mais vigor pelos mais poderosos (estejam eles conscientes de seu poder ou não). As regras sobre como as decisões são tomadas são conhecidas apenas por poucos e na medida em que a estrutura do grupo permanece informal, a consciência do poder é impedida por aqueles que conhecem as regras. Quem não conhece as regras e não é escolhido para iniciação deve permanecer confuso ou sofrer de desilusões paranóicas de que algo que não sabe bem o que é está acontecendo.

Para que todas as pessoas tenham a oportunidade de se envolver num dado grupo e participar de suas atividades, é preciso que a estrutura seja explícita e não implícita. As regras de deliberação devem ser abertas e disponíveis a todos e isso só pode acontecer se elas forem formalizadas. Isto não significa que a normalização de uma estrutura de grupo irá destruir a estrutura informal. Ela normalmente não destrói. Mas impede a estrutura informal de ter o controle predominante e torna disponível alguns meios de atacá-la. A “ausência de estrutura” é organizacionalmente impossível. Nós não podemos decidir se teremos um grupo estruturado ou sem estrutura, apenas se teremos ou não um grupo formalmente estruturado. Assim, a expressão “sem estrutura” não será mais usada, a não ser para referir-se à idéia que representa. O termo inestruturado referir-se-á àqueles grupos que não foram deliberadamente estruturados de uma forma particular. O termo estruturado referir-se-á àqueles que o foram. Um grupo estruturado tem sempre uma estrutura formal e pode também ter uma estrutura informal. Um grupo inestruturado tem sempre uma estrutura informal ou disfarçada. É esta estrutura informal, particularmente em grupos inestruturados, que fornece o fundamento para as elites.

A natureza do elitismo

“Elitista” é, provavelmente, a palavra mais abusada no movimento de liberação das mulheres. É usada com freqüência, mas nunca de forma correta. No movimento, ela normalmente se refere a indivíduos, ainda que suas atividades e características pessoais divirjam enormemente. Um indivíduo, enquanto indivíduo, nunca pode ser uma “elite” porque o termo “elite” só se aplica adequadamente a grupos. Nenhum indivíduo, independente de quão notório seja, pode ser uma elite.

De uma forma mais apropriada, uma elite refere-se a um pequeno grupo de pessoas que tem poder sobre um grupo maior do qual faz parte, normalmente sem responsabilidade direta sobre ele e, freqüentemente, sem seu conhecimento ou consentimento. Uma pessoa torna-se elitista por tomar parte ou defender o domínio deste pequeno grupo, seja esta pessoa bem conhecida ou totalmente desconhecida. Notoriedade não é uma definição de elitista. As elites mais traiçoeiras são normalmente comandadas por pessoas totalmente desconhecidas do grande público. Elitistas inteligentes são, em geral, espertos o suficiente para não se deixarem tornar muito conhecidos. Quando eles são conhecidos eles são vigiados e a máscara que esconde seu poder não fica mais firmemente presa.

O fato das elites serem informais não significa que sejam invisíveis. Num encontro de qualquer grupo pequeno, qualquer um com um olhar aguçado e um ouvido atento sabe dizer quem está influenciando quem. Os membros de um grupo de amigos confiarão mais nas pessoas do seu grupo do que nas outras. Eles ouvem mais atentamente e interrompem menos. Eles repetem os argumentos dos outros membros e cedem amigavelmente. Os “de fora”, eles tendem a ignorar ou enfrentar. A aprovação dos “de fora” não é necessária para se chegar a uma decisão; no entanto, é necessário para os “de fora” manter uma boa relação com os “de dentro”. É claro que as linhas não são tão bem definidas quanto as que eu tracei. Elas tem nuances de interação, não são roteiros pré-concebidos. Mas elas são discerníveis e têm o seu efeito. Quando se sabe quem é importante consultar antes da decisão ser tomada e a aprovação de quem é garantia de aceitação, então se sabe quem está mandando.

As elites não são conspirações. Dificilmente um pequeno grupo de pessoas se reúne e tenta tomar o grupo maior para seus próprios fins. As elites são, nada mais, nada menos, que um grupo de amigos que coincidem em participar das mesmas atividades políticas. Eles provavelmente manteriam sua amizade, participassem ou não dessas atividades políticas; e participariam das atividades, mantivessem ou não sua amizade. É a coincidência destes dois fenômenos que cria elites em qualquer grupo e as torna tão difíceis de serem destruídas.

Esses grupos de amigos funcionam como redes de comunicação à parte de quaisquer canais regulares para comunicação que possam ter sido estabelecidos pelo grupo. Se nenhum canal foi estabelecido, eles funcionam como as únicas redes de comunicação. Porque são amigas, normalmente partilhando os mesmos valores e posições, porque conversam socialmente entre si e se consultam quando as decisões comuns têm de ser tomadas, as pessoas que participam dessas redes têm mais poder no grupo que aquelas que não participam. E são raros os grupos que não estabelecem redes de comunicação informal por meio dos amigos que fazem neles.

Alguns grupos, dependendo de seu tamanho, podem ter mais do que uma dessas redes informais de comunicação. As redes podem até sobrepor-se. Quando apenas uma rede dessas existe, ela é a elite de um grupo que seria de outra forma inestruturado — queiram os seus participantes ser elitistas ou não. Se ela é a única dessas redes num grupo estruturado, ela pode ser ou não uma elite, dependendo da sua composição e da natureza da estrutura formal. Se existem duas ou mais dessas redes de amigos, elas podem competir pelo poder dentro do grupo, formando assim facções, ou uma delas pode deliberadamente abandonar a competição deixando a outra como elite. Num grupo estruturado, duas ou mais dessas redes de amizades normalmente competem entre si pelo poder formal. Essa é, em geral, a situação mais saudável. Os outros membros estão na posição de arbitrar entre os dois competidores pelo poder e são assim capazes de colocar exigências do grupo àqueles a quem deram uma confiança temporária.

Muitos critérios diferentes foram usados pelo país, uma vez que os grupos do movimento não decidiram concretamente quem deve exercer o poder dentro deles,. Com o passar do tempo, à medida que o movimento mudou, o casamento tornou-se um critério menos universal para a participação efetiva, embora todas as elites informais ainda estabeleçam padrões pelos quais apenas as mulheres que possuem certas características materiais ou pessoais podem participar. Os padrões freqüentemente incluem: origem de classe média (apesar de toda retórica sobre a relação com a classe operária), ser casada, não ser casada, mas viver com alguém, ser ou fingir ser lésbica, ter entre 20 e 30 anos, ter formação universitária ou, pelo menos, alguma passagem pela universidade, ser “descolada”; não ser muito “descolada”, seguir uma certa linha política ou se identificar como “radical”, possuir certos traços de personalidade “femininos”, como ser “gentil”, vestir-se adequadamente (seja no estilo tradicional, seja no anti-tradicional), etc. Existem também algumas características que quase sempre estigmatizariam a mulher como “desviante”, uma pessoa com a qual não se deve relacionar. Elas incluem: ser velha demais, trabalhar período integral (principalmente se está ativamente dedicada à “carreira professional”), não ser “gentil” e ser declaradamente solteira (ou seja, nem heterossexual, nem homossexual).

Outros critérios poderiam ser incluídos, mas eles têm todos temas comuns. O pré-requisito característico para participar das elites informais do movimento e, portanto, para exercer o poder, diz respeito à origem, à personalidade e à disponibilidade de tempo. Eles não incluem a competência , a dedicação ao feminismo, a posse de talentos ou a contribuição potencial ao movimento. Os primeiros, são critérios que normalmente se usa para escolher os amigos. Os últimos, são critérios que qualquer movimento ou organização tem de usar se pretende ser politicamente eficaz.

Embora essa dissecação do processo de formação de elites em grupos pequenos tenha sido crítico em suas perspectivas, ele não foi feito com a crença de que essas estruturas informais são inevitavelmente ruins, apenas que são inevitáveis. Todos os grupos criam estruturas informais como resultado dos padrões de interação entre os membros. Essas estruturas informais podem fazer coisas úteis. Mas apenas grupos inestruturados são totalmente governados por elas. Quando elites informais estão juntas com o mito da “ausência de estrutura”, não há meios de pôr limites ao uso de poder. Ele se torna caprichoso.

Isto tem duas conseqüências potencialmente negativas das quais deveríamos estar conscientes. A primeira é que a estrutura informal de deliberação será como uma “irmandade” , na qual se escuta as pessoas porque se gosta delas e não porque dizem algo significativo. Enquanto o movimento não faz coisas significativas, isso não importa muito. Mas para que seu desenvolvimento não pare numa etapa preliminar, ele deve alterar essa tendência. A segunda conseqüência é que as estruturas informais não têm obrigação de ser responsáveis pelo grupo como um todo. Seu poder não lhes foi dado; não pode ser tirado. Sua influência não se baseia no que fazem pelo grupo; portanto elas não podem ser diretamente influenciadas pelo grupo. Isso não torna necessariamente as estruturas informais irresponsáveis. Aqueles que se interessam em manter sua influência normalmente tentarão ser responsáveis. O grupo apenas não pode obrigar essa responsabilidade; ele depende dos interesses da elite.

As “estrelas”

A “idéia” da “ausência de estrutura” causou o aparecimento de “estrelas”. Vivemos numa sociedade que espera que grupos políticos tomem decisões e escolham pessoas que articulem essas decisões para o público em geral. A imprensa e o público não sabem como escutar seriamente as mulheres enquanto indivíduos; eles querem saber como o grupo se sente. Apenas três técnicas foram desenvolvidas para estabelecer a opinião de grandes grupos: o voto ou o referendo, o questionário de pesquisa de opinião pública e a seleção, num encontro apropriado, de porta-vozes do grupo. O movimento de liberação das mulheres não tem usado nenhuma dessas técnicas para se comunicar com o público. Nem o movimento como um todo, nem a maioria dos grandes grupos dentro dele estabeleceram meios de explicar suas posições sobre os vários assuntos. Mas o público está condicionado a procurar porta-vozes.

Apesar de não ter conscientemente escolhido porta-vozes, o movimento lançou muitas mulheres que chamaram a atenção do público por diversas razões. Essas mulheres não representam um grupo particular ou uma opinião estabelecida; elas sabem disso e normalmente o dizem. Mas porque não há porta-vozes oficiais nem qualquer corpo deliberativo que a imprensa possa entrevistar, quando ela quer saber a posição do movimento sobre um dado assunto, essas mulheres são tomadas como porta-vozes. Assim, queiram ou não, goste o movimento ou não, por omissão, as mulheres com distinção pública são colocadas no papel de porta-vozes.

Essa é uma das origens do que normalmente se sente das mulheres consideradas “estrelas”. Já que elas não foram escolhidas pelas mulheres do movimento para representar as posições do movimento, elas se ofendem quando a imprensa pressupõe que elas falam pelo movimento… Assim, o combate às “estrelas”, na verdade, encoraja precisamente o tipo de irresponsabilidade individual que o movimento condena. Ao expulsar uma companheira sob a pecha de “estrela”, o movimento perde qualquer controle que possa ter tido sobre a pessoa, que se torna livre para cometer todo tipo de pecado individualista de que foi acusada.

Impotência política

Grupos inestruturados podem ser muito eficazes para fazer as mulheres falarem sobre suas vidas, mas eles não são muito bons para fazer as coisas acontecerem. A não ser que o modo de operação mude, os grupos tropeçam quando chega o momento em que as pessoas se cansam de “apenas conversar” e querem fazer algo mais. Uma vez que o movimento como um todo, na maioria das cidades, é tão inestruturado quanto os grupos de discussão individuais, ele não é muito mais eficaz em tarefas específicas do que os grupos separados. A estrutura informal está raramente suficientemente junta ou suficientemente em contato com as pessoas para ser capaz de operar eficazmente. Assim, o movimento gera muita emoção e poucos resultados. Infelizmente, as consequências de toda essa emoção não são tão inócuas quanto os resultados e a vítima é o próprio movimento.

Alguns grupos que não envolvem muitas pessoas e trabalham em pequena escala, tornaram-se projetos de ação local. Mas essa forma restringe a atividade do movimento ao nível local. Além disso, para funcionarem bem, os grupos precisam normalmente se reduzir àqueles grupos informais de amigos que tocavam as coisas. Isto impede muitas mulheres de participarem. Enquanto a única forma de participação no movimento for a filiação a um pequeno grupo, aquelas mulheres que não aderem estão em evidente desvantagem. Enquanto os grupos de amizade forem o principal meio de atividade organizacional, o elitismo se torna institucionalizado.

Para aqueles grupos que não conseguem encontrar um projeto local ao qual se dedicar, o mero ato de estar junto torna-se a razão de estar junto. Quando um grupo não tem uma tarefa específica (e a conscientização é uma tarefa), as pessoas voltam suas energias para o controle de outras pessoas do grupo. Isto não é feito tanto por um desejo maligno de manipular os outros (embora às vezes o seja) quanto pela falta de alguma coisa melhor para fazer com seus talentos. Pessoas hábeis com tempo disponível e uma necessidade de justificar seus encontros se empenham no controle pessoal e gastam seu tempo criticando as personalidades dos outros membros do grupo. Disputas internas e jogos de poder pessoais tomam conta do dia. Quando um grupo está envolvido numa tarefa, as pessoas aprendem a conviver com os outros como são e a desprezar antipatias em benefício de objetivos maiores. Há limites colocados à compulsão de moldar cada pessoa à concepção que se tem do que deve ser.

O fim da conscientização deixa as pessoas sem direção e a falta de estrutura as deixa sem meios de chegar lá. As mulheres do movimento ou se voltam para si mesmas e suas companheiras ou buscam outras alternativas de ação. E há poucas alternativas disponíveis. Algumas mulheres simplesmente “fazem suas próprias coisas”. Isso pode levar a um grande grau de criatividade individual que pode, em grande parte, ser útil ao movimento, mas não é uma alternativa viável para a maioria das mulheres e certamente não promove um espírito de esforço cooperativo de grupo. Outras mulheres abandonam inteiramente o movimento porque não querem desenvolver um projeto pessoal e não encontraram meios de descobrir, associar-se ou começar projetos de grupo que as interessem.

Muitas se voltam para outras organizações políticas para dar-lhes o tipo de atividade estruturada e eficaz que elas não conseguiram encontrar no movimento das mulheres. Dessa forma, essas organizações políticas que vêm a liberação das mulheres como apenas uma questão entre outras, consideram o movimento de liberação um vasto manancial para o recrutamento de novos membros. Essas organizações não precisam se “infiltrar” (embora isso não exclua que o façam). O desejo de uma atividade política significativa gerado pelas mulheres ao se tornarem parte do movimento de liberação é suficiente para torná-las ansiosas de entrarem em outras organizações. O próprio movimento não permite nenhum tipo de vazão para suas novas idéias e energias.

Aquelas mulheres que entram em outras organizações políticas e permanecem no movimento de liberação das mulheres ou que entram no movimento de liberação e permanecem em outras organizações políticas, tornam-se, por sua vez, pontos de apoio para novas estruturas informais. Essas redes de amizade se baseiam mais nas suas políticas comuns não-feministas que nas características discutidas anteriormente; no entanto, a rede opera praticamente da mesma forma. Já que essas mulheres partilham valores, idéias e orientações políticas comuns, elas também se tornam elites irresponsáveis, não escolhidas, não planejadas e informais — pretendam sê-las ou não.

Essas novas elites informais são freqüentemente sentidas como ameaças pelas velhas elites informais estruturadas anteriormente a partir de outros movimentos. Trata-se de um sentimento justificado. Essas redes politicamente orientadas dificilmente estão dispostas a ser meras “irmandades” como eram muitas das antigas e querem fazer proselitismo de suas idéias políticas e feministas. Isso é natural, mas as implicações disso para o movimento de liberação das mulheres nunca foram adequadamente discutidas. As velhas elites dificilmente estão dispostas a discutir abertamente essas diferenças de opinião porque isso implicaria em expor a natureza da estrutura informal do grupo. Muitas dessas elites informais tem se escondido sob a bandeira do “anti-elitismo” e da “ausência de estrutura”. Para combater efetivamente a competição de outra estrutura informal, elas teriam que tornar-se “públicas” e essa possibilidade é temida por suas inúmeras implicações perigosas. Assim, para manter seu próprio poder, torna-se mais fácil racionalizar a exclusão dos membros da outra estrutura informal por meios como o “combate aos vermelhos”, o “combate às lésbicas” ou o “combate às heteros”. A única outra alternativa é estruturar o grupo formalmente de tal maneira que o poder original seja institucionalizado. Isso nem sempre é possível. Se as elites informais forem bem estruturadas e tiverem exercido uma boa quantidade de poder no passado, tal tarefa é viável. Esses grupos têm uma história de atividade política relativamentente eficaz na qual a firmeza da estrutura informal se mostrou um substituto adequado à estrutura formal. A sua estruturação não altera muito sua operação, embora a institucionalização da estrutura de poder abra espaço para a contestação formal. Normalmente, são os grupos que mais necessitam de estrutura, os menos capazes de criá-la. Suas estruturas informais não foram bem formadas e a adesão à ideologia da “ausência de estrutura” as faz relutantes em mudar de estratégia. Quanto mais inestruturado um grupo é, tanto mais carece de estruturas formais; quanto mais adere a uma ideologia de “ausência de estrutura”, mais vulnerável está a ser tomado por um grupo de companheiras oriundas de organizações políticas.

Uma vez que o movimento como um todo é tão inestruturado quanto a maioria dos grupos que o constitui, ele é igualmente suscetível à influência indireta de outras organizações. Mas o fenômeno manifesta-se diferentemente. Num nível local, a maior parte dos grupos consegue operar autonomamente mas apenas os grupos que conseguem organizar uma atividade no nível nacional podem ser considerados grupos nacionalmente organizados. Assim, são as organizações feministas estruturadas que em geral fornecem as direções nacionais para as atividades feministas e essas direções são determinadas pelas prioridades dessas organizações. Grupos como a “Organização Nacional das Mulheres” e a “Liga de Ação pela Igualdade das Mulheres” e algumas convenções feministas de esquerda são as únicas organizações capazes de montar uma campanha nacional. Os inúmeros grupos inestruturados de liberação das mulheres podem escolher se vão apoiar ou não as campanhas nacionais, mas são incapazes de organizar uma campanha elas próprias. Dessa forma, seus membros se tornam as tropas sob a liderança das organizações estruturadas. Eles não têm sequer os meios de decidir quais devem ser as prioridades.

Quanto mais inestruturado um movimento é, menos controle ele tem sobre as direções na qual se desenvolve e sobre as ações políticas na qual se engaja. Isso não significa que suas idéias não vão se espalhar. Dado um certo grau de interesse dos meios de comunicação e condições sociais favoráveis, as idéias poderão ser difundidas amplamente. Mas o fato das idéias serem difundidas não implica que serão implementadas; significa apenas que serão discutidas. Na medida em que podem ser aplicadas individualmente, elas podem ser realizadas, mas na medida em que requerem poder político coordenado para ser implementadas, elas não o serão.

Enquanto o movimento de liberação das mulheres permanece dedicado a uma forma de organização que enfatiza os pequenos e inativos grupos de discussão entre amigas, os piores problemas da inestruturação não se farão sentir. Mas esse estilo de organização tem seus limites; é politicamente ineficiente, excludente e discriminatório quanto às mulheres que não estão ou não podem estar ligadas a redes de amigas. Aquelas que não se enquadram no esquema existente por motivo de classe, raça, profissão, casamento, maternidade ou personalidade serão inevitavelmente desencorajadas de tentar participar. Aquelas que se encaixam desenvolverão interesses dissimulados de manter as coisas como estão.

Os interesses dissimulados dos grupos informais serão mantidos pelas estruturas informais que existem e o movimento não terá meios de determinar quem deve exercer o poder nele. Se o movimento continua, deliberadamente, a não escolher quem deve exercer o poder, ele termina por não abolir o poder. Tudo que faz é abdicar o direito de exigir daquele que exerce o poder e a influência que tenha responsabilidade por esse poder e essa influência. Se o movimento continua a manter o poder tão difuso quanto possível porque sabe que não pode exigir responsabilidade daquele que o tem, ele impede qualquer grupo ou pessoa de dominá-lo totalmente. Mas, simultaneamente, ele se condena a ser tão ineficaz quanto possível. Um meio-termo entre a dominação e a ineficácia pode e deve ser encontrado.

Esses problemas estão surgindo agora porque a natureza do movimento está mudando necessariamente. A conscientização, como função principal do movimento de liberação das mulheres, está se tornando obsoleta. Devido à intensa publicidade da imprensa nos últimos dois anos e aos inúmeros livros e artigos que circulam agora nos meios estabelecidos, a liberação das mulheres se tornou uma expressão assimilada. Seus temas são debatidos e os grupos de discussão informais são formados por pessoas que não têm conexão explícita com nenhum movimento. O trabalho puramente educacional não é mais uma necessidade imperativa. O movimento deve continuar com outras tarefas. Ele precisa agora estabelecer suas prioridades, determinar suas finalidades e perseguir seus objetivos de maneira coordenada. Para fazê-lo ele deve organizar-se localmente, regionalmente e nacionalmente.

Princípios da estruturação democrática

A partir do momento em que o movimento não se prende mais tenazmente à ideologia da “ausência de estrutura” ele estará livre para desenvolver aquelas formas de organização que melhor se adequam ao seu funcionamento saudável. Isto não significa que devemos ir ao outro extremo e cegamente imitar as formas tradicionais de organização. Mas nós também não devemos cegamente rejeitá-las. Algumas técnicas tradicionais mostrar-se-ão úteis, ainda que imperfeitas; outras nos darão idéias sobre o que devemos fazer para obter certos fins com custos mínimos para as pessoas no movimento. Na maior parte dos casos, nós teremos que experimentar com formas diferentes de estruturação e desenvolver uma variedade de técnicas para usar em situações variadas. O “sistema de sorteio” é uma dessas idéias que emergiram do movimento. Ele não é aplicável a todas situações mas é útil em algumas. Outras idéias para a estruturação são necessárias. Mas antes que procedamos na experimentação inteligente, devemos aceitar a idéia de que não há nada de inerentemente ruim na estrutura em si mesma — apenas no seu uso excessivo.

Enquanto entramos nesse processo de tentativa e erro, existem alguns princípios que podemos ter em mente que são essenciais para a estruturação democrática e que são também politicamente eficazes:

1. Delegação, por meios democráticos, de autoridade específica a indivíduos específicos para tarefas específicas. Deixar pessoas assumirem trabalhos ou tarefas por omissão ou negligência significa apenas que eles não serão feitos de forma segura. Se as pessoas são escolhidas para uma tarefa, preferencialmente após manifestarem um interesse ou vontade de fazê-la, elas assumem um compromisso que não pode ser facilmente ignorado.

2. Exigência de que aqueles a quem a autoridade foi delegada sejam responsáveis frente aqueles que os escolheram. Essa é a forma pela qual o grupo tem controle sobre as pessoas em posições de autoridade. Indivíduos podem exercer o poder, mas é o grupo quem tem a última palavra sobre a forma como o poder é exercido.

3. Distribuição da autoridade entre tantas pessoas quanto possa ser razoavelmente possível. Isso impede o monopólio do poder e exige daqueles em posições de autoridade que consultem muitas outras pessoas no exercício de seu poder. Também oferece a muitas pessoas a oportunidade de ter responsabilidade por tarefas específicas e dessa forma aprender habilidades específicas.

4. Rotação de tarefas entre as pessoas. Responsabilidades que são mantidas durante muito tempo por uma mesma pessoa, formalmente ou informalmente, passam a ser vistas como sua “propriedade” e não são facilmente substituídas ou controladas pelo grupo. Inversamente, se a rotatividade das tarefas é muito freqüente, as pessoas não têm tempo para aprender seu trabalho direito e adquirir o sentimento do trabalho bem feito.

5. Alocação de tarefas segundo critérios racionais. Escolher pessoas para uma posição porque elas são queridas pelo grupo ou lhes dar um trabalho pesado porque não são queridas, prejudica, a longo prazo, o grupo e a pessoa. Habilidade, interesse e responsabilidade têm de ser as principais preocupações nessa seleção. As pessoas devem ter a oportunidade de aprender habilidades que não possuem, mas isso é melhor implementado por uma espécie de programa de “aprendizes” do que pelo método do “ou nada ou afoga”. Ter uma responsabilidade maior do que se agüenta pode ser desmoralizante. Inversamente, ser rejeitado naquilo que se faz bem não encoraja ninguém a desenvolver habilidades. As mulheres têm sido punidas por serem competentes por toda história humana. O movimento não precisa repetir esse processo.

6. Difusão de informação a todos com a maior freqüência possível. Informação é poder. O acesso à informação aumenta o poder. Quando uma rede informal dissemina novas idéias e informações entre si, sem passar pelo grupo, ela está envolvida num processo de formação de opinião sem a participação do grupo. Quanto mais se sabe como as coisas funcionam, mais politicamente eficaz se é.

7. Acesso igualitário aos recursos necessários ao grupo. Isto nem sempre é possível, mas deve se lutar para consegui-lo. Um membro que mantenha um monopólio sobre um recurso necessário (por exemplo, uma gráfica ou um laboratório de revelação do marido) pode influenciar indevidamente o uso daquele recurso. Habilidades e informação também são recursos. E as habilidades e informações dos membros só estarão igualmente distribuídos quando os membros quiserem ensinar o que sabem para os outros.

Quando esses princípios são aplicados, eles asseguram que quaisquer estruturas que sejam desenvolvidas serão controladas pelo grupo e assumirão responsabilidades frente a ele. O grupo de pessoas em posição de autoridade será difuso, flexível, aberto e temporário. Eles não estarão numa posição que facilita a institucionalização do seu poder, porque as decisões definitivas serão feitas pelo grupo como um todo. O grupo terá assim o poder de determinar quem deve exercer a autoridade dentro dele.

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