“Eu teria feito o mesmo”: campanha pede libertação de mexicana presa por matar seu estuprador

Retirado de Opera Mundi

Yakiri Rubí, de 20 anos, matou o agressor a facadas na Cidade do México. Na delegacia, ela foi detida e acusada de homicídio.

Em um vídeo que está circulando pela web, ativistas, intelectuais e mexicanos comuns pedem a libertação de Yakiri Rubí Rubio Aupart, uma jovem de 20 anos da Cidade do México, presa desde dezembro acusada pelo assassinato de seu estuprador. No vídeo, todos os participantes, durante três minutos e meio, declaram o lema da campanha: “eu teria feito o mesmo.”

O que eles dizem é que também teriam matado Miguel Ángel Ramírez Anaya, homem que teria estuprado Yakiri em 9 de dezembro de 2013 em um hotel na Cidade do México. De acordo com a família da jovem, às 8 da noite daquele dia, dois homens em uma moto se aproximaram dela, a ameaçaram com uma faca e a levaram para o Hotel Alcazar, no Distrito Federal.

Lá, o agressor ficou sozinho com a jovem, enquanto o irmão foi para casa. Durante o estupro, Yakiri se defendeu e pegou a faca com a qual Miguel Ángel a tinha ameaçado antes, a enfiou em seu pescoço, e fugiu. O homem conseguiu sair do hotel e falar com o irmão, antes de morrer após perder muito sangue. Yakiri foi denunciar o estupro na delegacia, porém, foi imediatamente detida por homicídio qualificado.

Ela continua presa, apesar de a advogada ter apresentado provas que justificariam a legítima defesa. Sua detenção é ilegal, uma vez que o código penal do Distrito Federal estabelece legítima defesa quando a vítima “repele um agressão real, atual ou iminente e sem razão”. Isso quer dizer que, pela lei, essa pessoa não somente não pode ser condenada, mas sua conduta não é reprovável.

Ao se comprovar a legítima defesa, ao não ser considerado um delito o crime contra seu agressor, Yakiri teria de ser imediatamente libertada, mas a Procuradoria Geral de Justiça do Distrito Federal(PGJDF) ainda não acredita no estupro, declarando, por meio do procurador, que ainda estão coletando provas e fazendo diligências. O mais impressionante é que a própria a Procuradoria entrou com uma ação penal contra ele por não ser a autoridade que deve ser convencida disso, e sim, o juiz responsável pelo processo.

Enquanto isso, na Cidade do Méxido e nas redes sociais, artistas, cidadãos e grupos de defesa de direitos humanos se mobilizaram a favor da libertação da jovem, entre os quais Nuestras Hijas de Regreso a Casa (Nossas Filhas de Volta pra Casa, ONG de mães cujas filhas desapareceram ou foram mortas), Pan y Rosas, organização que luta contra o feminicídio e a jornalista Lydia Cacho.

As principais acusações feitas contra o sistema judiciário são as de que Yakiri foi detida ilegalmente e ficou incomunicável na agência 50 do Ministério Público, quando pretendia denunciar o estupro, quando uma autoridade lhe imputou a responsabilidade de ter cometido homicídio, sem levar em conta o direito que ela tinha de se defender legitimamente para garantir sua integridade física e sua vida; qualificando a versão dos fatos de falsa, a priori.

A sensibilização foi grande também depois das declarações públicas do procurador, que a chamou de mentirosa quando disse que não existiu o estupro e a culpou por ter entrado voluntariamente no hotel. A raiva da família de Yakiri e dos grupos de cidadãos explodiu quando ficou evidente que o aparato de investigação, inclusive publicamente, se ativou não para esclarecer o delito do estupro, mas para colocar, a qualquer custo, a responsabilidade penal sobre a vítima, pelo crime de homicídio.

Material da campanha “Yo hubiera hecho lo mismo” (Eu teria feito o mesmo) que pede a libertação da jovem Yakiri Rubio

Machismo

Não é a primeira vez que o México está no centro de polêmicas e reinvindicações de gênero, uma vez que o machismo prevalece em todos os âmbitos da sociedade, na forma de acosso sexual, violência de gênero, discriminação e até nos tristemente famosos casos de feminicídio. De acordo com a advogada Araceli Olivos, da área de defesa do Centro de Direitos Humanos Miguel Agustín Pro Juárez, “nesse país, as mulheres enfrentam obstáculos constantes para denunciar a violência de gênero, tanto no âmbito privado como no público”.

Segundo ela, em um primeiro momento, frente à autoridade de investigação – o Ministério Público –, o primeiro obstáculo a ser derrubado é conseguir abrir uma investigação, “pois muitas vezes culpam as próprias sobreviventes agredidas, minimizam a violência (por exemplo, catalogando-a como um problema familiar) ou se esforçam para encontrar explicações que terminem revertendo a responsabilidade sobre a própria mulher”, afirmou a Opera Mundi.

Ainda segundo ela, “isso, no melhor dos casos, desanima a vítima, que desiste de sua tentativa de encontrar justiça, verdade e reparação”. Entretanto, como no caso de Yakiri, ela lembra, “no pior dos casos a autoridade acusadora encontra motivos suficientes para reverter formalmente a responsabilidade, presumindo que a vítima é culpada por uma conduta que não é delitiva”.

Um segundo obstáculo são os juízes, “também incapazes de julgar com perspectiva de gênero, que dão pleno valor à versão do Ministério Público”. Para Araceli, “se, por um lado, como no caso de Yakiri, a mulher é acusada de ter se defendido, presumem a culpabilidade e não a inocência dela, do outro, trata-se do julgamento de um crime cometido contra uma mulher, o qualificam de delito de menor impacto, por exemplo, em vez de tentativa de homicídio: lesões corporais.”

Menino negro é espancado e amarrado nu em poste na zona sul do Rio

Por Douglas Belchior, retirado do Blog do Negro Belchior

Nu, orelha cortada com faca, marcas de espancamento no corpo, amarrado pelo pescoço em um poste na Avenida Rui Barbosa, no bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro. Assim foi encontrado um adolescente negro, “acusado” de praticar furtos na zona sul carioca.

A situação foi relatada por Yvonne Bezerra, ativista de direitos humanos no Rio, através das redes sociais e teria ocorrido na noite da útlima sexta-feira (31).

Depois de ter sido socorrido pelos bombeiros, que removeram a trava de bicicleta que o prendia, o adolescente contou ter sido abordado por três homens que se denominaram “Os Justiceiros” e usavam motos. Em nome da “justiça”, o trio espancou o jovem com uma facada na orelha. Depois, tiraram a sua roupa e o amarraram ao poste.

Os justiceiros do século XXI não conhecem Debret – Vitor Teixeira

O Brasil mestiço e a carne mais barata do mercado

Poderia aqui discorrer sobre os vários significados da cena forte, inadmissível e ao mesmo tempo banal e naturalizada apresentada pela foto acima. Nossa realidade é tão perversa que não seria exagero dizer que esse adolescente “teve sorte”. Afinal, os grupos de extermínio aqui denominados “justiceiros” (quase sempre compostos por policiais e ex-policiais) não costumam ser tão bondosos. Seu modus operandi é outro: matar e, se possível, sumir com o corpo.

Não por acaso, é exatamente o perfil deste garoto, jovem e negro, o alvo prioritário da violência no país, em uma absurda proporção de 7 para cada 10 vítimas de assassinatos, conforme já relatei aqui diversas vezes.

Mas o sentimento de repulsa à naturalização racista da violência dirigida ao corpo negro foi mais bem relatado nos parágrafos que encontrei no Blog do Controversias:

“Dia 2 de fevereiro, dia de Iemanjá. Enquanto o samba acontecia na Pedra do Sal, a poucos quilômetros dali, no bairro do Flamengo, puseram um negro nu preso pelo pescoço num pelourinho improvisado. Ele estava assaltando pessoas (ou foi o que disse quem publicou a foto). Pra servir de exemplo aos pretos ladrões. Recentemente, um caso semelhante aconteceu na praia.

Esse jovem não estava na Pedra do Sal ouvindo a alta poesia da música negra, tomando cerveja e conversando com seus amigos sobre o trabalho do mestrado porque tenha um delírio malévolo de assaltar pessoas, fruto de uma natureza mais maligna ou menos humana que qualquer pessoa, mas porque não existe espaço objetivo para dignidade e felicidade de todos no projeto capitalista, racista e violento de país que dirige o Brasil. Sem entender isso, não se entende nada e, facilmente, até mesmo sem perceber, se cai no colo dos fascistas.

Não existe vacina política histórica, nada está garantido e nada está assegurado; a humanidade se reinventa todos os dias. Repúdio absoluto e urgência de responder isso à altura. Não pode deixar naturalizar de jeito nenhum. Peço a todos que façam chegar a todas as organizações políticas, mandatos, movimentos e entidades democráticas de que tenham conhecimento.”

[accessibleyoutube id=”PrhciNo0Uh8″ width=480 height=320]

Por que precisamos de espaços exclusivos?

Por Janaina Oliveira para as Blogueiras Negras

Uma amiga feminista me contou sobre um novo coletivo negro na sua universidade. O coletivo é fechado, restrito aos alunos negros, o que minha amiga não entendia. Ela como feminista, que sabe da importância do debate sobre a questão racial, e que se identifica muito com algumas manifestações da cultura negra, não entendia porque não podia participar daquele espaço, apenas por ser branca. Outro dia, foi a vez de tentar explicar para um amigo feminista, negro e homossexual, porque existem espaços feministas onde homens não entram.

É mais do que necessário que nós, que atuamos no sentido de promover novos discursos e garantir direitos de grupos estigmatizados, sejamos pessoas empáticas ao sofrimento do outro, e entendamos as relações entre gênero, sexualidade, raça e classe.

Porém, por mais que você tenha consciência dos seus privilégios, isso não faz com que você os perca. Querendo ou não, usufruímos dos privilégios que nos são concedidos. Muitos deles, inclusive, passam despercebidos.

Não é difícil para mim, mulher cis, reproduzir transfobia sem perceber. Rever meu privilégio é um exercício diário, é desconstruir um discurso que me foi ensinado e que ainda é o discurso vigente. É ouvir, ouvir e ouvir, refletir sobre o meu local de fala e me colocar no lugar do outro. E ainda assim posso acabar falhando, porque estou lidando com sentimentos que não são meus. E dentro de instâncias de decisão e de espaços de acolhimento, isso pode ser desastroso.

Quando penso em espaços exclusivos são essas palavras que vem na minha cabeça: acolhimento e empoderamento (e eu nem sei se é possível pensá-las separadamente).

Eu já ouvi muitas pessoas brancas dizendo que se sentem negras. Bom, cada um de nós pode se sentir como quiser. Podemos nos aproximar de culturas diversas, que podem ter ou não relação com a nossa raça ou origem. Porém, por mais que uma pessoa branca admire e se entusiasme com a cultura negra, ela continua usufruindo os privilégios de ser branca. Eu posso ser apaixonada pela cultura escandinava, que continuarei sendo uma mulher negra nascida e criada em uma sociedade racista. Ainda que se tente problematizar um conceito de raça, a polícia sabe muito bem identificar a “cor padrão”, o mercado sabe muito bem quem tem “boa aparência”, todos nós aprendemos desde cedo o que é um “cabelo bom” e um “cabelo ruim”.

feminism-4

Pode ser extremamente difícil compartilhar uma situação de violência ou expor sua vulnerabilidade diante de quem representa justamente o privilégio, o espaço que lhe é negado, o motriz de seu sofrimento. Quando falamos de opressão, não falamos apenas de política e direitos negados. Estamos falando também de dor. E falar sobre nossas dores não é fácil.

Não é fácil apenas porque dói. Reconhecê-las também é difícil, principalmente quando falamos de negritude no país do mito da democracia racial.  As nuances muitas vezes sutis de um racismo que se alia ao sexismo, produzindo estigmas que começam já na infância, que se desdobram em aspectos mais íntimos, como as relações familiares, a sexualidade, a autoestima, e as relações amorosas. Questões que geram sentimentos comuns às mulheres negras, e sobre os quais ainda estamos aprendendo.

É expondo nossas dores que ligamos os pontos, e nossos sentimentos ganham sentido. E descobrimos que de repente aquela história não é única, é uma história de muitas. É esse compartilhar que nos acolhe e nos fortalece. Somos mulheres negras e temos uma identidade em comum, uma identidade em construção, ainda desconhecida para muitas.

Criar espaços exclusivos é também criar espaços de deliberação, é promover a voz de quem é silenciado, mesmo em movimentos sociais ou organizações ditas libertárias. Eu vejo feministas brancas por todos os lados se organizando e levantando suas questões. O velho clichê “lugar de mulher é na cozinha” hoje soa absurdo, mas onde estão as mulheres negras e pobres? Ainda permanecem nos velhos lugares marcados de um passado escravocrata: o do trabalho doméstico e o da objetificação sexual.

Todo mundo já sabe que racismo e machismo andam juntos, mas na hora da discussão, somos apenas um segundo (terceiro, quarto…) assunto, uma subpauta, em prol de um feminismo que se acredita único. Precisamos entender as nossas demandas, fortalecer nossas reivindicações e exercitar nossa autonomia. O protagonismo é um elemento chave no processo de empoderamento.

Não se trata de inverter uma relação de exclusão, como alguns reclamam. É promover um local seguro de discussão para quem dá de cara com portas fechadas todos os dias. Entendendo os espaços exclusivos como locais de autoconhecimento e fortalecimento, fica claro que não há contradição com a ideia de igualdade.

Fora que espaços exclusivos não são os únicos. Há espaços para trocar com outros movimentos, para construir frentes múltiplas, para dialogar com quem não é de movimento nenhum, e até espaços para enfrentamento.

Para todas as pessoas que, muito bem intencionadas, se sentiram barradas em algum momento: não é pessoal, não é uma retaliação. Seria uma verdadeira demonstração de empatia se entendessem que apoiar espaços exclusivos é apoiar o nosso fortalecimento político, e que aliar-se é estar ao lado, não à frente.

 

A Fabricação do Vício

Texto retirado do site Libertas e escrito pelo Professor Henrique Carneiro.

A história de certos conceitos médicos é essencialmente política, ou seja, ligada ao poder e aos interesses materiais de instituições, classes, camadas e grupos sociais . Talvez o conceito médico mais controverso do último século e meio seja o de “dependência” de drogas. Este é o termo hoje adotado como o mais indicado, de acordo a uma nomenclatura normatizada internacionalmente pela OMS, mas antes dele houveram outros termos análogos e igualmente oficiais em suas épocas, tais como “adição”, “hábito”, “transtornos da vontade”, “insanidade moral”.

A construção política dos conceitos conecta o Estado e a Medicina, pois a “história social da linguagem é basicamente uma questão de poder” (Burke, 1987). Existem conceitos investidos de alto poder simbólico, conceitos “tótens”, como escreve Berridge (1994). A demonização do “drogado” e a construção de um significado suposto para o conceito “droga” alcança na época contemporânea um auge inédito. Um fantasma ronda o mundo, o fantasma da droga, alçado à condição de pior dos flagelos da humanidade.

Afinal, o que é a dependência de drogas? Hábito, vício, necessidade, desejo, vontade. Na definição atualmente aceita, o “abuso” se distinguiria do “uso” por produzir um quadro de tolerância, síndrome de abstinência, compulsividade, desestruturação da vida pessoal e persistência no consumo apesar dos efeitos nocivos .

O surgimento deste conceito, assim como deste personagem, é simultâneo de uma série de outros, como o “homossexual”, o “alienado”, o “erotômano” ou “ninfomaníaca”, o “onanista”. Antes desse momento impreciso, que toma seus contornos no início do século XIX, beber demasiado não era uma doença. No máximo, uma prova de mau caráter ou de falta de auto-controle. A embriaguez não suprimia a vontade, aliás, não se distinguia entre desejo e vontade de beber, não havia um vocabulário que expressasse a existência de uma compulsão, de uma escravidão à bebida ou alguma outra droga. As exceções são alguns relatos sobre o uso do ópio no Oriente no século XVI e, a partir do século XVIII, os  primeiros autores (J. Jones, 1701; Lettson, 1787; S. Crumpe, 1793) que passam a descrever “uma perda de controle voluntária do hábito”, que será mais tarde chamada de “abuso” (Berridge, 1994). Mas acima de tudo, o uso do álcool e outras drogas era visto como uma prática condenável em muitos aspectos, e virtuosa em outros, mas jamais como uma doença.

A doença do vício será uma construção do século XIX. A concepção da embriaguez como doença pode ser datada de 1804, quando Thomas Trotter publicou o Essay Medical Philosophical and Chemical on Drunkenness, que seria considerado um marco na “descoberta” (ou na criação?) de uma nova entidade nosográfica na medicina. Para Trotter, o hábito da embriaguez seria “uma doença da mente”.

Benjamin Rush, nos Estados Unidos, já em 1791, relacionara alcoolismo e masturbação como “transtornos da vontade”, desencadeando contra ambos uma campanha médica e psiquiátrica. Na França, Esquirol tipificou a ebriedade como “monomania” e “insanidade moral com paralisia da vontade”.

Continue lendo