Teoria da alienação, organização política e o movimento estudantil da USP

Retirado de: http://passapalavra.info/?p=67274

A mesma contradição de interesses intrínseca à divisão do trabalho está contida no interior dos partidos políticosPor Matheus Nordon Preis

O ano de 2012 parece ter colocado em evidência a última pista necessária para desvendar o mistério acerca do estado deplorável em que se encontra o movimento estudantil da Universidade de São Paulo (USP). Prevendo o fim do mundo, as organizações políticas presentes no corpo discente resolveram abandonar a luta por uma sociedade mais justa, esqueceram-se dos seus ideais e seguiram reproduzindo-se enquanto pequenas estruturas hierarquizadas concentradoras de poderzinhos políticos; ou abandonaram a prática-crítica da realidade (que se aproxima cada vez mais do fim) para se reclusar no maravilhoso mundo do discurso, onde podem fazer o que quiserem e descansar confortavelmente da realidade conflituosa e contraditória; um mundo que nunca sofrerá mutações nem acabará.

Deixando de lado a crueldade do tom irônico, pretende-se fazer uma crítica das relações sociais engendradas pelos partidos no meio político dos cursos. É preciso destacar que trata-se de uma pequena crítica estrutural, não de uma crítica moral ou pessoal a seres complexos – dotados de desejos e medos – que não são individual, ou naturalmente, responsáveis pelas dinâmicas problematizadas. Toma-se aqui por partidos: organizações políticas totais (i. e. que não se restringem a tratar de temas específicos) institucionalizadas, de estrutura hierarquizada, que possuam um projeto de escalada ao poder político.

A estrutura hierarquizada dos partidos políticos reproduz a relação social fundamental da sociedade capitalista: a relação entre dirigentes e executantes. A mesma relação presente no momento da produção, no ambiente de trabalho, é encontrada na política, aqui:

Adotando um modelo burguês de organização, instaurando uma divisão do trabalho cada vez mais profunda que levou à cristalização de uma nova camada de dirigentes separados da massa de militantes agora reduzidos ao papel de executantes”. (Cornelius Castoriadis, Proletariado e Organização I)

A divisão do trabalho intelectual/material coloca as decisões acerca da produção e dos produtos privados sob o poder exclusivo de uma classe; que, acumulando os excedentes e os meios de produção (também privados), reforça essa relação de poder e lhe dá sustentação material. É um ciclo que só aprofunda a desigualdade entre produtores e possuidores.

Pela divisão do trabalho, torna-se possível, ou melhor, acontece efetivamente que a atividade intelectual e a atividade material – o gozo e o trabalho, a produção e o consumo – acabam sendo destinados a indivíduos diferentes” (Karl Marx, A Ideologia Alemã)

Para entender a analogia com os partidos políticos devemos trocar a ideia de trabalho pela noção de ação política: organização e mobilização; e tomaremos por atividade intelectual a deliberação das ações. A mesma contradição de interesses intrínseca à divisão do trabalho está contida no interior dessas organizações: sua divisão social hierarquizada produz necessariamente divisão entre interesses, cada um referente a uma posição social na estrutura. Em teoria, o interesse “universal” é o socialismo, a finalidade teórica dos partidos de esquerda, que segundo o pensamento marxista é a emancipação da humanidade, o vir a ser sujeito – essência do ser humano – na medida que possuímos as faculdades precisas para a produção das condições de vida e para fazê-la da forma que nos convém.

O socialismo é, portanto, a contestação total da sociedade da alienação e da dominação, a autodeterminação generalizada. E o interesse “universal” aparece como interesse coletivista, na medida que a autonomia generalizada precisa ser realizada por cada um e absolutamente todos.

Na prática, o interesse – travestido, em teoria, de coletivista e de emancipação total – “universal”, disputado politicamente (principalmente pela base engajada de militantes), é deliberado por uma cúpula fechada de dirigentes (com maior ou menor grau de influência da base), da qual não necessariamente se conhecem as intenções. Na prática, o interesse “universal” do partido é o interesse de uma classe política dominante, legitimado por uma estrutura de relações desiguais.

A desigualdade produz no pólo passivo (a base) da organização a possibilidade de ascensão ao pólo ativo, e assim o interesse pela emancipação coletivista vem à realidade como interesse individualista: tem-se por objetivo, para deixar de ser dominado, a busca da dominação política de outros, a posição de dirigente. Uma face do par antitético que precisa ser superado para alcançar o socialismo.

Enquanto há cisão entre o interesse particular e o interesse comum, enquanto portanto também a atividade não é devida voluntariamente, mas sim naturalmente, a própria ação do homem se transforma para ele em força estranha, que a ele se opõe e o subjuga, em vez de ser por ele dominada”. (Marx, A Ideologia Alemã)

Mas o que legitima a estrutura de alienação e dominação política dos partidos? Fica claro que, na empresa, a desigualdade de poder é sustentada pela impossibilidade do trabalhador de sobreviver sozinho, sem meios de produção, em um mundo onde tudo é propriedade de outrem. Mas os militantes socialistas dependem dos dirigentes e das organizações partidárias? Dependem na medida em que estão condicionados a delegar o curso de suas vidas ao que lhes é estranho, condicionados à passividade, quando vão à escola, quando assistem a um espetáculo, quando trabalham, enfim, em todas as instâncias da vida a relação entre dirigentes e executantes está presente. Somos levados a acreditar que, se nos comportamos bem, seremos recompensados com os cargos de autoridade, e assim resiste o sistema da dominação.

No entanto, as organizações políticas não são necessariamente propriedade privada de ninguém. Não existe um impedimento material para a existência de qualquer organização política que seja, a não ser a violenta repressão do Estado (caso suas ações políticas sejam efetivas). O que explica a hegemonia das estruturas políticas hierarquizadas é a falta de experiências de espaços horizontais, é a tradição.

O movimento estudantil da USP, enquanto organização política, funciona de maneira ainda mais desastrosa. Cada militante do corpo discente que vem de uma determinada organização hierarquizada tenta reproduzir, conforme sua experiência lhe ensina, a lógica de dominação dirigente/base no interior do movimento. Acreditam que o problema da organização é a sua desestruturação; que precisam, para estruturá-la, de bons líderes, bons dirigentes, confiando naqueles que sempre comandaram suas vidas políticas. E se alçam a fazer o papel de seus mestres, dirigir. Entretanto, não existe um contrato, entre todos os estudantes, de participação política, nem mesmo passiva, e por isso falham na construção das entidades. Ou seja, os estudantes independentes não têm necessidade de se sujeitar à dominação dos partidos – e, ao que tudo indica, se observarmos os espaços do movimento, também não têm interesse –, e que militante de um partido determinado iria se submeter à direção de outro partido? Não seria mais coerente filiar-se ao outro partido em primeiro lugar? O movimento estudantil da USP é (perdoem a generalização) uma organização de direções concorrentes sem base nenhuma. Quem vai executar as deliberações do(s) movimento(s)?

Algum leitor de mente sã já deve ter percebido um problema. Todo esse tempo tratamos com naturalidade a redução do movimento estudantil a um simples campo de disputa de poder interno: “que militante de um partido determinado iria se submeter à direção de outro partido?”. Ora, algum que reconhecesse que a pauta trazida pela organização adversária é de fato útil para a construção de uma sociedade mais justa. Mas esse tipo de postura é raro. E é ainda mais raro que as diferentes organizações políticas consigam se unir em torno de uma pauta – mesmo quando ações, destacadas por determinado grupo, são reconhecidas e aprovadas por consenso ou maioria de votos nos espaços de deliberação – as organizações concorrentes teimam em não comparecer à mobilização.

A explicação deste fato também está na estruturação hierarquizada da política. Retomemos a hipótese da introdução e a contradição inerente à estrutura dos partidos. Nos períodos em que não se vislumbra com nitidez a possibilidade e os caminhos para a tomada da gestão da sociedade pelo conjunto dos trabalhadores, o interesse individualista se apresenta mais determinante para a ação dos estudantes organizados. Passam a se autoconstruir (como se a salvação da humanidade esteja atada a seus respectivos partidos), tentando agarrar para si o poder, aonde quer que consigam se infiltrar, tornando os espaços competitivos; e deixam para segundo plano a luta por igualdade e união.

Os militantes perderam o futuro. Será o fim da história, de Fukuyama, que se perpetua? O movimento estudantil vai continuar alheio à luta pelo socialismo – as vanguardas vão continuar se digladiando futilmente – enquanto os modelos horizontais de organização não forem praticados. Vamos lutar lado a lado? Ou um à frente do outro, nos acotovelando para furar a fila que nos foi entregue?

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Um Comentário

  1. Ótimo TEXTO!

  2. Massa.

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