Democracia direta e representativa e a USP (por Hugo Scabello)

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Hugo Scabello, priemeiro semestre de 2012.

Assembleia, autogestão e democracia direta; eleição, heterogestão e democracia representativa

Por participar duma tendencia estudantil que possui como dois pilares a autogestão e a democracia direta, considerei como importante elaborar um texto visando destrinchar estes, além de construir uma defesa a eles e criticar a forma representativa de se fazer política – a qual atualmente disputa espaço, poder e legitimidade com a direta no movimento estudantil. Em outras palavras: como entendemos que a política deva ser organizada e executada, porquê entendemos assim, e porquê somos contra a forma representativa de se fazer política.

I.I Democracia direta e autogestão

Democracia direta é uma forma coletiva e horizontal de fazer política onde todos os interessados podem participar efetivamente da construção desta. A democracia direta usualmente possuí como espaço central a assembleia e seus rituais, sendo que esta é caracterizada por ser realizada necessariamente no cara-a-cara, por todos os participantes possuírem o mesmo direito a esporem suas posições e propostas, e, caso não haja consenso, todos possuem o mesmo poder de voto. O que não significa que não possa haver divisão das tarefas e funções: é normal e necessário para o funcionamento da democracia direta que sejam escolhidos responsáveis (delegados) para desempenhar tarefas específicas. Apesar disto, e convergente com as práticas de democracia direta, defendemos também a ação direta como método de se fazer a luta política, ou seja, entendemos tanto que a política deva ser organizada por todos os interessados, quanto que as práticas de luta possibilitem o envolvimento direto destes. Se o ritual de assembleia é a pedra angular da democracia direta, manifestações de rua, sabotagens, greves e ocupações são os principais exemplos de ação direta de massas. A assembleia até pode eventualmente tirar comunicados e moções em nome do movimento, contudo, a sua função primordial é a de debater e deliberar ações.

A legitimidade da democracia direta não é advinda da quantidade de pessoas presentes na assembleia, tampouco da representatividade. Aqueles que criticam – e muitas vezes tentam até mesmo inviabilizar – uma assembleia com base no argumento de que “não há quorum”, de que “ela está esvaziada” e, assim sendo, ela não teria legitimidade para tomar decisões em nome dos estudantes, confundem a lógica da democracia direta com a lógica da democracia representativa: uma assembleia não toma (ou pelo menor não deveria tomar) decisões em nome dos estudantes, mas sim em nome do movimento estudantil; uma assembleia não deve representar ninguém, mas sim organizar a luta. A assembleia não se legitima pela lógica da representatividade, mas sim por seus rituais, mas sim por ser um fórum aberto a todos interessados e que funciona de maneira horizontal. Assim sendo, é extremamente absurdo propor um quorum mínimo para o funcionamento da assembleia: trata-se geralmente duma manobra que visa enfraquecer e atravancar a democracia direta. Isto não significa de maneira alguma que é razoável, por exemplo, uma assembleia com meia dúzia de pessoas decidir por organizar uma greve numa categoria de milhares, pois é simplesmente impossível que uma duzia de braços executem esta deliberação. Este tipo de proposta fora da realidade acaba servindo basicamente para desmoralizar a assembleia frente ao restante dos estudantes.

É possível também organizar instrumentos e entidades com base e legitimados na lógica política da democracia direta, os quais são conhecidos como autogestionários. Isto porque as decisões sobre a gestão destes são tomadas em assembleias, assim como os responsáveis para encaminhá-las também são escolhidos nestas. Um bom exemplo de instrumento organizacional autogestionário foi o comando de greve, enquanto que um de entidade autogestionária são os CAs com estatutos (e prática e claro) autogestionários.

I.II Democracia indireta e heterogestão

Democracia representativa é uma forma de fazer política onde esta é organizada e construída por um grupo, grupos e/ou indivíduos, eleitos a partir duma eleição por urna. Está na base da legitimidade da democracia representativa a ideia de representação política, ou seja, de que por intermédio da eleição é possível compor uma casta que represente os interesses da maioria ou da totalidade das pessoas. Em momentos nos quais se demanda maior legitimidade para o poder dos representantes, pode-se fazer plebiscitos – os quais possuem basicamente a mesma lógica das eleições. Importante notar que há uma cisão a priori em dois grupos quanto ao poder de participar efetivamente da política: o grupo daqueles que constroem a política – os eleitos, e o grupo daqueles que assistem passivamente ao espetáculo – os eleitores. Além disto, quem de fato faz e garante a execução das deliberações políticas não costuma ser o grupos dos eleitos, mas sim um corpo de funcionários e burocratas subordinados a este (caso dos governos representativos).

Apesar de as vezes entidades de resistência que se pautam essencialmente pela lógica representativa se utilizarem da ação direta como método de luta esporádico, a principal e convergente forma de se fazer política na democracia representativa é – obviamente – através da representação: emitir opiniões, juízos e posições em nome dos representados.

Atualmente quase a totalidade das organizações políticas que detêm poder se pautam e se legitimam essencialmente através da democracia representativa: seja o moderno Estado-nação de origem capitalista e seus braços, sejam as entidades de resistência das classes dominadas; as quais infelizmente também estão contaminadas e corrompidas pela lógica dominante de representação.

II. Crítica

II.I A impossibilidade da representação (citado de “Democracias”)

“Para um parlamentar representar de fato os interesses de seus eleitores seria necessário, no mínimo, que ele conhecesse com perfeição toda a gama de interesses e opiniões políticas de cada um deles. Contudo, temos já aqui alguns agravantes pesados… Os interesses e opiniões de cada um dos eleitores não são fixos, eles mudam no tempo, mas também mudam de acordo com a situação. Isto é, o ser humano não é uma individualidade monolítica, imutável, movida exclusivamente pela razão e completamente autoconsciente de si própria – o ser humano não é o Robson Crusoé. Não bastaria fazer uma conversa previa com estes eleitores tampouco um plebiscito (mesmo que esta e este fossem possíveis), assim como não bastaria seguir um programa político “a risca”.

No limite, para um parlamentar poder representar os interesses de todos os seus eleitores, ele teria que ser de fato todos os seus eleitores. O que é, obviamente, impossível.
Outro fator que aumenta a impossibilidade da representação é o fato dos interesses dos eleitores dum único parlamentar serem divergentes. É comum ter, entre os votantes dum mesmo político profissional, diferentes e contraditórias matizes ideológicas, e, consequentemente, diferentes interesses políticos. Um exemplo contemporâneo e tupiniquim é o dos eleitores do Partido (dito) dos Trabalhadores, que vão de bancários a banqueiros, de miseráveis a milionários, de feministas a machistas, de umbandistas a crentes e a ateus. Como, por exemplo, um parlamentar pode representar – espelhar – os interesses de todos estes grupos na questão do aborto?

Um segundo problema relacionado, que fica visível ao olharmos a questão da representatividade a nível do parlamento como um todo (não somente para um parlamentar e seus eleitores), é o da representação dos interesses do povo. Mas como representar os interesses desta totalidade se ela é, na verdade, divida em diferentes classes econômicas antagônicas entre si? Como representar os interesses dos trabalhadores sem terra – que querem expropriar e redistribuir as propriedades agrícolas – e os interesses dos barões latifundiários – que querem manter seus reinos e privilégios – simultaneamente?”

II.II A dupla “liberdade” política

“Votar é dar-se um senhor” Élisée Reclus
“não sentis o perigo de dizer ao povo (…) que seu dever é pôr uma vez de quatro em quatro anos, um minuto a cada mil e quinhentos dias, religiosamente, tranquilamente, sem esforço e sem perigo, uma cédula numa urna? A batalha exige outra coisa bem diferente desse gesto periódico, distante. Exige uma atividade constante” Sébastien Faure

Assim como com o fim do modo feudal de produção e com o advento do capitalismo se deu um processo de dupla liberdade na esfera econômica de poder – dum lado a liberdade negativa do trabalhador livre dos meios de produção de vender sua força de trabalho; do outro a liberdade positiva do capitalista livre para gerir despoticamente a produção e explorar a força de trabalho – com o fim do regime político feudal e com o advento dos modernos Estados nações democráticos se deu um processo de dupla liberdade na esfera política – dum lado a liberdade negativa do eleitor livre dos “meios de produção” política de “vender” seu voto, e do outro a liberdade positiva da camarilha dos eleitos livre para gerir o Estado e dominar politicamente o povo.
Esta “dupla liberdade” gera por um lado alienação, apatia, desconhecimento e irresponsabilidade, frente aos processos políticos: a ampla massa fica aparte das deliberações – meramente as recebe passivamente – não entende o funcionamento e as possibilidades da política, e muitas vezes se coloca numa confortável – porém tosca – posição apolítica, criticando moralmente as deliberações tomadas pelos profissionais – confundindo assim uma falha estrutural da maneira da classe dominante de se fazer política, com uma falha moral daqueles que atuam neste palco: não compreendem que o verdadeiro problema é o trono, não o rei.

Esta mesma “dupla liberdade” gera por outro lado uma casta supervalorizada, sobreresponsabilizada, profissionalizada e necessariamente hipócrita, frente aos mesmos processos e estruturas políticas. O restrito bando dos eleitos detém “superpoderes” nas decisões governamentais, o que acarreta “superresponsabilidades” na quase irrestrita rede da esfera política. Por melhores que os humanos escolhidos para estes cargos sejam, eles não conseguirão deliberar com qualidade sobre todas as questões políticas, e ao mesmo tempo responder as alienadas expectativas das massas excluídas destas – as quais devido este afastamento, este apartheid político, são incapazes de compreender de fato a política dominante e sua funcionalidade.
Interessante notar que os problemas referentes a “dupla liberdade” causados pela representação são encontrados integralmente em entidades de resistência corrompidas por este método dominante e segregacionista de se fazer política: basta olharmos para os CAs e DCE da USP. Importante também perceber como a representação é uma arma extremamente eficaz para gerar imobilidade e passividade nestas entidades – o que casa perfeitamente com os interesses dos setores cooptados e/ou reformistas.

II.III Concepção de indivíduo e sociedade/coletividade por detrás das democracias (também citado de “democracias”)

1. Democracia representativa

“Qual sentido é expresso no termo “liberdade política”, tão usual neste sistema de governo? Sabemos que com ele não se quer dizer liberdade de fazer política institucionalizada, isto é, de participar com voz e voto nas decisões políticas da sociedade, já que este poder é restrito ao grupo social dos parlamentares. O que se quer dizer, então, com este termo? Que liberdade é essa?
Trata-se da possibilidade de emitir opiniões políticas dentro dos limites impostos pela lei, isto é, pelo parlamento (esta ressalva é especialmente importante para nós que vivemos sobre o domínio da oligarquia dos eleitos do Estado brasileiro, que por tantas vezes no passado próximo perseguiu pessoas devido suas opiniões); e da possibilidade de participar do pleito eleitoral. Ou seja, é uma qualidade estritamente individual, e absolutamente concedida dentro das paredes construídas numa instancia outra, a do parlamento. Que tipo de liberdade é essa?

Trata-se do conceito de liberdade burguês-iluminista que tem por trás uma concepção de ser humano a-histórico como um indivíduo com motivações estritamente racionais, absolutamente indivisível e autoconsciente, e completamente apartado da coletividade. Formulação a qual normalmente é ilustrada pela mítica figura do Robson Crusoé, e que traz consigo a ideia de sociedade como uma mera soma destes Robsons, no limite chega-se a repisada frase de Margaret Tatcher: “Não existe essa coisa de sociedade, apenas indivíduos e as suas famílias”. Somente assim é possível compreender em que sentido a soma dos votos de todos os eleitores expressa a “vontade popular”, e porque isto é entendido como liberdade política.

Não por acaso é possível traçar paralelos entre a ideia de liberdade econômica no capitalismo e a de liberdade política na oligarquia dos eleitos: ambas compartilham a mesma concepção de ser humano, e são manifestações da mesma ideologia em aspectos diferentes da sociedade. Assim como nesta ideologia a liberdade política é – como antes disse – uma qualidade estritamente individual, e absolutamente concedida dentro das paredes construídas numa instancia outra, e que se expressa de fato no ato ritualístico também individual do voto e da possibilidade de emitir opiniões políticas, não uma característica da coletividade onde a política é gerida e construída participativamente por meio dum ritual específico; a liberdade econômica também é uma qualidade estritamente individual e absolutamente concedida dentro das paredes construídas numa instancia outra, que se expressa no ato individual do consumo de mercadorias e na possibilidade de as criticar, não uma característica da coletividade onde a economia é gerida participativamente através dum ritual específico.”

2. Democracia direta (igualmente citado de “Democracias)

“Já por detrás da proposta de democracia está uma concepção de política como algo estritamente coletivo e frequente. A construção desta não se dá pela soma das opiniões individuais, pela soma dos votos, o resultado do método político democrático é algo novo e essencialmente coletivo, despersonalizado. Não se dá num plebiscito, mas sim através dum ritual de discussão coletiva que valoriza o diálogo, de forma a se chegar a uma proposta comum, a um consenso. E caso este não seja possível, usa-se o voto como instrumento de deliberação. Entretanto, é importante frisar que democrático se refere ao processo como um todo – o qual necessariamente tem caráter de permanência no tempo – de forma nenhuma à votação pontual exclusivamente. Neste sentido, um plebiscito nada tem a ver com a concepção de política democrática.
Enquanto a oligarquia dos eleitos tem como pilar uma visão ideológica de ser humano “Robson Crusoé” e de sociedade como a mera soma aritmética destes, a democracia se apoia numa concepção de humano como uma criatura imanentemente coletiva – não se pensa este separado da coletividade a qual ele pertence. Desta maneira, a noção de liberdade é igualmente coletiva, onde a liberdade do outro no lugar de ser uma barreira a minha, no lugar da minha liberdade terminar onde começa a do outro, “a minha liberdade é estendida ao infinito ao se encontrar com a do outro”. Isto devido ao fato de se compreender que somente dentro da organização coletiva da sociedade é possível se falar em liberdade, a coletividade é vista como a mãe – a que dá a luz e amamenta – da liberdade. A partir daí, é possível compreender o que Bakunin quer dizer ao escrever que “enquanto existir um único ser humano escravizado, a minha liberdade não será completa”.
Trata-se, então, duma metodologia política vinculada necessariamente a um determinado agrupamento orgânico – não a um agrupamento fictício formada pela soma de “Robsons”(…)”

III Caso e conjuntura do ME da USP

III.I Um “frankenstein” político

Depois desta simplória explanação é possível compreender a lógica do ME da USP como um amalgama contraditório entre a lógica representativa dominante e a direta: as entidades se legitimam essencialmente pela lógica representativa e pelas urnas, todavia o ME ainda muito depende das assembleias e da ação direta para ter eficácia nas lutas políticas (o que é óbvio se lermos a luta dos estudantes como de resistência e potencialmente antisistêmica ]ou ao menos antigovernista[, e sua força com base principalmente nas ações diretas massivas – uma ação vale mais do que mil discursos).

Esta contradição é reforçada ao lembrarmos que a democracia eleitoral parte duma concepção abstrata e falsa de coletivo, enquanto a democracia direta se pauta numa coletividade concreta: enquanto as urnas veem erroneamente a soma atomizada dos indivíduos que estudam numa mesma faculdade como um coletivo – mesmo que somente na teoria, mesmo que estes nunca levantem de suas respectivas carteiras, mesmo que estes nunca construam decisões e ações juntos – e os convida/intima a escolhes/eleger um único setor organizado em chapa do ME como dirigente; a assembleia é composta pelos setores em movimento, formando uma coletividade real – que decide, atua e luta junto – aglutinando os grupos e indivíduos que de fato fazem a política estudantil. Isto é, a partir dum prisma libertário (ou ao menos combativo), o movimento é formado por aqueles que se movimentam, e o que as eleições fazem é dividir e hierarquizar estes: no lugar de todos atuarem em pé de igualdade na construção coletiva da luta estudantil, é eleito um único grupelho para a dirigir. O que – caso entendermos que a força do movimento dos estudantes vêm basicamente do grande número de pessoas que o compõem – têm como imprescindível resultado o enfraquecimento da luta.
Assim sendo, é um equívoco ler a proposta de democracia direta como vanguardista por defender que aqueles que se movimentem deliberem sobre os rumos e destinos da luta, enquanto a proposta de democracia indireta possibilitaria a participação de todos. Isto basicamente porque a participação na democracia dos eleitos é uma falácia: permitir que todos escolham quem irá fazer política em substituição, em nome da coletividade, não é participação – muito pelo contrário, é um ato de autoalienação política – é abrir mão da participação e da responsabilidade política em favor dum circulo restrito de dirigentes. Nada mais justo que aqueles que compõem e se responsabilizam de fato pelas decisões políticas do movimento sejam os que construam os rumos deste.

III.II A proposta rizomática de se fazer política

A proposta da tendência libertária e autônoma Rizoma para o ME USPiano, uma proposta que se inspira na experiência histórica da práxis anarquista na luta de classes, é de organizarmos este com base e legitimado exclusivamente através da lógica da democracia direta, da lógica da assembleia. As pessoas que compõem o Rizoma não possuem interesse em falar em nome dos estudantes, tampouco em os dirigir. O nosso interesse é em contribuir na auto-organização e na autogestão do movimento, independentemente e preferencialmente sem depender em nada da legitimidade das urnas. Nosso interesse é em participar e construir a política de fato, promovendo e fomentando ao máximo a ação direta de massas como método de luta.

Temos a “ganancia” de incentivar um ME que seja forte e ativo, e que não realize nem dependa de eleições e de urnas para afirmar esta força e legitimidade perante os setores dominantes da educação classista e disciplinar, mas também perante ao próprio conjunto dos estudantes.

Viva a autogestão!

Viva o poder estudantil!

Viva a luta de classes!

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