Na botânica, o termo Rizoma se refere ao caule polimorfo capaz de dar origem a diferentes ramos – floríferos, folíferos ou raízes –, normalmente situado abaixo da terra e dotado de crescimento horizontal. Em 1980, no livro Mil Platôs, Giles Deleuze e Félix Guattari se apropriaram do rizoma botânico para corporificar um sistema filosófico desprovido de raízes fundamentais, que se articula como rede integrada em que todos os elos ao mesmo tempo sustentam e derivam dos demais. Abordagem complexa e inovadora, o rizoma preocupa-se em delinear multiplicidades no nosso mundo, em mensurar as linhas subterrâneas que as perpassam, defini-las por estratos e segmentaridades, por associações e por conflitos. Abre, o rizoma, a possibilidade de se perseguir o traço que necessariamente se conecta a outros traços – o lócus onde tudo está em relação com tudo: “um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais.”.
Outros pensadores endossam a inteligibilidade do rizoma. E dentre esses o mais conhecido é Michel Foucault.
Igualmente atento as multiplicidades, Foucault estudará os conflitos e associações entre as forças sociais, as assimetrias de potência e de estratégias entre elas, os embates históricos e espaciais pelo exercício do poder. No livro Vigiar e Punir, de 1975, Foucault demonstrará como o poder nunca é exercido por uma força única e estritamente repressora. O poder envereda-se por vários grupos distintos, mediante uma série de diferentes dispositivos e mecanismos, ordenando os corpos, criando prazeres, exorcizando as almas, produzindo riquezas.
Caso articulemos o rizoma de Deleuze e Guatari ao poder de Foucault numa análise de nosso próprio tempo e espaço, a apreensão de traços ocultos (ou melhor, ocultados) de nossa sociedade torna-se possível.
Em São Paulo atual, a partir desse prisma, nota-se de imediato que existe um estrato social bastante discernível e seleto que exerce e legitima o poder. São alguns grupos especializados e dinâmicos, e que existem em recíproca associação: os governantes executivos do estado, as chefias legislativas e burocráticas, grupos de juízes, desembargadores e promotores do judiciário, investidores e especuladores de grandes fundações e empresas, pesquisadores e cientistas alinhados aos interesses da acumulação, setores midiáticos conservadores, as altas patentes militares – o exercício do poder fia o tecido subterrâneo que os associa.
Efetivamente, poucos lugares reproduzem de maneira tão completa essa associação como a Universidade de São Paulo: os altos cargos burocráticos da reitoria são nominados pelo governo do estado do PSDB; juntos, ambos advogam a submissão do amparo à pesquisa a critérios mercadológicos, ao mesmo tempo em que impõem padrões empresarias de produção e convívio acadêmico; professores titulares tecnicistas garantem a perpetuação desse projeto nos seletos conselhos universitários; o desenvolvimento dessa universidade – empresarial e capitalizada – induz a presença de muros, fardas e armas, sempre legítimas para algum juiz da ordem e do patrimônio; setores conservadores da mídia veiculam esse projeto como “inovador” e “modernizador”; empresas prestadoras de serviços terceirizados à universidade (como a União e a BKM), fundações privadas com sedes no campus (como a FIA e a FIP), e grandes empresas beneficiadas com a pesquisa mercadológica (como a Volkswagen e a Bayern) apóiam institucional e financeiramente a perpetuação da reitoria e dos gestores do estado, terminando o circuito.
Embora a USP seja talvez o mais perfeito exemplo de oligopolio empresarial e institucional, tal padrão de associação existe em todo tecido social na contemporaniedade, percorrendo outras universidades, juízes, burocratas, empresas, bancos, polícias, governantes…
A mobilização estudantil nos últimos anos, realizada tanto na USP como em várias outras universidades brasileiras, desafia concretamente esses circuitos oligárquicos, uma vez que os exclui do espaço universitário, opondo a seus padrões empresariais e a seus saberes de mercado a solidariedade da auto-gestão e a liberdade de criação que só o convívio horizontal pode possibilitar.
É essa oposição concreta que motiva as prisões e os processos criminais, as expulsões, as demissões, as difamações difundidas pelos latifundiários da informação, as agressões nos nossos espaços de convívio.
É, todavia, também por causa dessa oposição que um outro circuito de associação entre gurpos se ramifica subterrâneamente, em oposição ao estrato social oligárquico por se realizar no exercício e na reflexão de práticas de resistência – e não na reafirmação das relações de dominação.
Em outras palavras, se há ramos que percorrem o gabinete do governador, passam pela mesa do reitor e alcançam a salinha do delegado, existem também ramos que podem vir a integrar os alvos dessa dominação nas práticas de resistência, renovando-lhes as possibilidades de um modo de vida mais autônomo e mais justo. Os estudantes mobilizados das mais diversas universidades, os funcionários e os operários combativos, os intelectuais realmente críticos, grupos de juízes democráticos, entidades sindicais e estudantis não aparelhadas, grupos partidários externos ao Estado e ao teatro democrático, meios de comunicação livres, movimentos sociais que reivindicam moradia, terra ou trabalho – esses grupos dividem o peso das opressões impostas pelas elites, ao mesmo tempo em que se unem nas perspectivas de um futuro melhor.
Analisando o exercício do poder em nossa sociedade atual pela ótica do rizoma, assim, percebe-se que múltiplas forças sociais compõem dois conjuntos maiores que existem em conflito: de um lado, o circuito oligopolista que elabora os critérios para se discernir o que se pode e o que não se pode fazer, que possui a legitimidade para internar e encarcerar, que se apropria dos espaços e do trabalho coletivo em nome de valores como “democracia” e “ordem”; e do outro lado o círculo da resistência, mais volátil e constantemente ameaçado, que se expressa de diferentes formas para garantir autonomias básicas, para assegurar seus espaços de convívio e confraternização, para dar sobrevida a suas tradições de arte, de produção, de conduta.
É evidente que a relação entre esses dois pólos maiores é complexa e multiforme, e em ultima instância depende das associações e dos conflitos menores que cada multiplicidade social desenvolve com as demais. É evidente também que esses dois conjuntos não correspondem a totalidade da sociedade: entre eles se situam outras diversas multiplicidades sociais, que oscilam entre os dois pólos e jamais podem julgar-se neutras.
Todavia, parece inegável também que nos últimos anos essa polarização só se fez aumentar, e conflitos como em Pinheirinho são exemplos reais das novas tendências de radicalização que se abrem.
Nesse processo de radicalização que prenuncia mudanças sociais, os estudantes libertários podem e devem aparecer como agentes sociais relevantes. Podem porque detém o privilégio de desfrutar de uma formação com potencial de crítica a nossa sociedade, além de estarem livres de parte das coações que inibem e domesticam a maior parte do povo. E devem porque é fundamental para o tempo de hoje que grupos pensem e experimentem novos modos de vida coletiva, tornando assim mais aguda a oposição aos modelos consumistas e artificiais que ainda nos dominam. Em suma, os estudantes autônomos e libertários podem contribuir socialmente criando possibilidades – mesmo que encerradas numa curta duração – de ruptura com as tradicionais cadeias de hierarquia, de superação dos espetáculos e das simulações do capitalismo, estimulando a autogestão e a cooperação, valorizando concepções não mercadológicas da arte, do espaço, da vida.
É diante dessas perspectivas que nos organizamos na USP: para solidificar uma tendência libertária e horizontal entre os estudantes, que transcenda as tradicionais expressões partidárias da esquerda e sugira novas possibilidades de criação e reflexão frente a um conflito cada vez mais tenso. Um coletivo estudantil que rompa com as noções de vanguarda para erigir as bandeiras de autogestão, de democracia direta, de formação coletiva teórica, de emancipação dos espaços públicos. Um grupo ativo, um grupo libertário, um grupo de estudantes.
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