Depois das declarações irresponsáveis do governador e da caça às bruxas empreendida pela mídia, deem uma lida na resposta conjunta de anarquistas e libertárixs:.
Acesse em pdf pelo link: http://e.sarava.org/carta
*Carta aberta de Coalizão Anarquista e Libertária de Porto Alegre em resposta ao governador Tarso Genro*
Esta carta, elaborada por diversos coletivos anarquistas, em nome da Coalizão Anarquista e Libertária de Porto Alegre, vem contestar as afirmações irresponsáveis e equivocadas do governador Tarso Genro em relação à militância anarquista. O governador mostra um entendimento errôneo e uma má intenção em relação à militância anarquista, com acusações de que esta seria “vândala, violenta, desorientada, antidemocrática, e até fascista”. Como anarquistas, repudiamos com veemência essas declarações. O anarquismo é uma filosofia política séria, com grande produção teórica e um rico histórico de lutas sociais, organização popular, e reinvenção de práticas de liberdade. Está presente há mais de um século e vai continuar atuante em Porto Alegre, na luta por uma sociedade livre de qualquer forma de dominação e autoritarismo.
O anarquismo não é antidemocrático, mas sim radicalmente democrático. A militância anarquista tem como pilares a democracia direta, a autogestão, e a horizontalidade organizacional nos processos coletivos de tomada de decisões. E, cabe destacar, é justamente no compromisso profundo com a democracia direta que se localiza a principal discordância da militância anarquista com partidos políticos identificados com a esquerda, que operam de forma burocrática e verticalizada. Defendemos a manutenção dos nossos valores de tomada de decisão horizontal, enquanto governos, mesmo quando constituídos por partidos de esquerda, passam tempo demais preocupados em fazer alianças para manter o poder, e parecem só escutar a população quando ela grita nas ruas.
O anarquismo não luta contra as instituições democráticas, mas pela democratização radical das instituições. A militância anarquista está na gênese da formação dos sindicatos e do fortalecimento da classe trabalhadora, que ainda hoje em diversos países permanece alinhada ao anarcossindicalismo, construindo sindicatos fortes, que tomam decisões de forma horizontal e repudiam os privilégios e negociatas de dirigentes de sindicatos. A militância anarquista também já construiu escolas racionalistas e libertárias, centros de cultura, e bibliotecas livres, em favor de uma educação livre do autoritarismo e acessível a todos e todas. Em uma época na qual o sistema escolar era segregado por sexo e dominado pela Igreja Católica e pela Educação Moral e Cívica, anarquistas criavam escolas mistas, sem exames e livres de castigos corporais. Essas belas iniciativas que marcam a nossa História só foram encerradas por causa de ataques promovidos pelo governo brasileiro da época, desmantelando escolas, bibliotecas e sindicatos. Sofremos em nossa história – enquanto minoria política – inúmeros episódios de perseguição e terror promovidos por capitalistas e estadistas de diferentes nacionalidades. Mas sempre nos reerguemos. Hoje, o anarquismo se faz presente na autogestão nas fábricas e no campo, em escolas, hospitais e comunidades. Mantemos bibliotecas, compartilhamos conhecimento, promovemos debates, reivindicamos justiça, nos organizamos de acordo com nossos valores, vivemos construindo autonomia em relação a esse sistema capitalista injusto. Na Grécia, temos a experiência atual de hospitais funcionando pela autogestão, graças ao compromisso de voluntários, trabalhadores e pacientes, na tomada de decisões sobre o funcionamento de cada hospital, em um contexto no qual a saúde pública tem sido abandonada e negligenciada pelo governo.
O anarquismo também é radicalmente contra todas as formas de violência e opressão. Lutamos contra o racismo, o machismo, a homofobia, a transfobia, a xenofobia, as remoções forçadas, o extermínio da juventude moradora da periferia, e a exploração do trabalho assalariado. Somos contra toda forma de violência institucionalizada em espaços como manicômios, prisões, e quartéis, e em favor da liberdade de todas as pessoas. Anarquistas estão sempre presentes na luta contra o fascismo em qualquer lugar do mundo, integrando frentes antifascistas e lutando ao lado das populações oprimidas. Somos contra as diversas formas de violência, humilhação, preconceito, assédio, exploração, e castigo, e nos posicionamos pelo fim das opressões. Na Grécia, por exemplo, grupos anarquistas locais oferecem abrigo e apoio a imigrantes perseguidos pela extrema direita, enquanto que a esquerda eleitoreira não se pronuncia e nada faz em relação às agressões motivadas pela xenofobia.
Diferentemente do que o governador e os de alta patente acreditam, a comunicação entre anarquistas a nível internacional não é uma relação nova, mas uma das bases históricas do anarquismo. O internacionalismo é um valor caro à militância anarquista, e significa afirmar a experiência de compaixão, solidariedade e aprendizado que supera barreiras físicas, culturais ou linguísticas, e a identificação com toda a humanidade, independente de nacionalidade. Não acreditamos nas fronteiras e mantemos comunicação com muitas pessoas também identificadas com o anarquismo, para trocar experiências sobre formas de organização e luta contra as opressões, para fazer circular leituras, relatos de experiência e pedir e manifestar solidariedade, assim como esperamos que outros grupos políticos dedicados a lutas por justiça social também façam. Apoiamos populações oprimidas por todo o globo em suas lutas contra a opressão e em favor da autodeterminação.
Cabe destacar que isso não tem nenhuma relação com “táticas de guerrilha” ou “terrorismo”. Repudiamos qualquer ato terrorista, pois o terrorismo é uma opressão e trata vidas humanas como objetos – e somos contrários a qualquer forma de objetificação. Não nos alistamos a exércitos, sejam exércitos oficiais ou paramilitares, pois repudiamos o terror que os militares e outros grupos armados impõem sobre as populações civis desde que chegaram a esse e a outros continentes.
A resistência nas ruas não é uma exclusividade de anarquistas: são práticas comuns em todas as populações que se sentem agredidas por aparatos repressores. Não é preciso ser anarquista para se defender – basta não aceitar nem naturalizar a agressão. A utilização de escudos ou bastões, que o governador e a Brigada Militar acusam de “táticas de guerrilha orientadas por anarquistas internacionais”, são práticas, na verdade, bastante óbvias de autodefesa, e que tem sido muito divulgadas em vídeos e jornais de grande circulação, como as que reportam os conflitos na Turquia, por exemplo. Essas práticas estão para além da filosofia política anarquista, estão no senso comum. Mas caso o governador seja contra a população se proteger da violência da polícia, e acredite que divulgar a informação de que vinagre protege dos efeitos do gás lacrimogênio seja uma “tática de guerrilha”, isso significa que o governador acredita que a população deve sofrer de forma indefesa às agressões da polícia, e que concorda com práticas abusivas como as detenções arbitrárias por porte de vinagre e os espancamentos de manifestantes e jornalistas, como aconteceu em São Paulo no dia 13 de junho. Que concorda também com invasões de espaços culturais sociais, como ocorreu no dia 21 de junho em Porto Alegre: tudo sem qualquer mandato judicial. Ao ver o governo desrespeitar as regras da própria democracia que diz defender, fica evidente o por quê de os anarquistas alegarem que ela é uma farsa.
Seguindo na linha da criminalização das organizações populares e dos movimentos sociais, contestamos a acusação absurda de “coordenação dos atos de violência”, e questionamos a própria capacidade de investigação da polícia e a fundamentação de suas hipóteses. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, a polícia arquiva cerca de 90% dos inquéritos de homicídios, e chega à resolução de menos de 5% dos casos. Se a polícia não tem competência nem para investigar crimes contra a vida – que se supõe ser a sua prioridade -, como se acredita que ela teria competência para compreender movimentos sociais, o que exige profundo conhecimento teórico e reflexivo sobre Sociologia, História e Filosofia Política e experiência em organizações horizontais? Em vez de conhecer em profundidade e tratar movimentos sociais de forma séria e respeitosa, a Brigada Militar insiste em acusações sem fundamento e sem autocrítica, demonstrando sua ideologia autoritária e contrária à organização popular.
Manifestamos repúdio à intensificação da perseguição policial e de práticas de espionagem sobre os movimentos sociais, em especial sobre a militância anarquista. Em função das grandes obras para os megaeventos, o Estado brasileiro tem intensificado a violência sobre as populações mais vulneráveis e os movimentos sociais. Segundo a Associação Nacional dos Comitês Populares da Copa, a previsão é de que 250 mil famílias sejam atingidas pelas remoções forçadas nos preparativos para a Copa de 2014 no Brasil. A Agência Brasileira de Inteligência divulgou um boletim, no dia 7 de junho, anunciando a intensificação das práticas de espionagem e da infiltração de agentes provocadores nos movimentos sociais, com o claro objetivo de desmobilizar as organizações populares, em função das exigências da FIFA. Considerando os gastos de R$ 4 milhões na compra de armas erroneamente chamadas de “não letais”, a serem empregadas em ações de repressão a manifestações populares pelo Estado do Rio Grande do Sul, e a falta de posicionamento do governador em relação ao Regime de Exceção imposto pela Lei Geral da Copa, tudo indica que o governador concorda com essa supressão da democracia e com a repressão às manifestações populares. Esse processo de militarização da segurança pública e expansão do Estado de Vigilância contribui apenas para o aumento da violência sobre a população de periferia e para a perseguição a movimentos sociais, e consiste em um ataque brutal à liberdade de pensamento e de organização.
Cabe questionar também a cumplicidade do governador Tarso Genro com o grupo RBS, grupo conhecido pelas suas campanhas de difamação e criminalização dos movimentos sociais e até do próprio Partido dos Trabalhadores, tantas vezes já criminalizado por esta empresa de comunicação e marketing de grande poder político. O próprio fato de as ações desmedidamente violentas da polícia em Porto Alegre se darem sempre que as manifestações se aproximaram do prédio da RBS já denuncia o vínculo entre os interesses econômicos do governo e dessa empresa de comunicação. As declarações do governador na última sexta feira parecem apontar também para uma afinidade ideológica crescente entre eles. Somos a favor de uma política decidida horizontalmente, pela democracia direta, e não por dirigentes de conglomerados empresariais e midiáticos.
Por fim, o anarquismo não é uma doutrina, mas uma filosofia política. Não seguimos ordens, dogmas e nem interesses escusos de grupos empresariais, diferentemente de outros grupos políticos verticalizados e centrados na punição, no medo e na obediência. Repudiamos qualquer forma de silenciamento e de violência, e convocamos a todos para conhecer mais sobre a História do Anarquismo e sobre as práticas de autogestão e democracia direta, a fim de abolir preconceitos em relação ao anarquismo, como os expressos anteriormente, e construir uma sociedade livre de qualquer forma de dominação e autoritarismo.