Texto utilizado em formação rizomática sobre gênero. Parte da coletânea feminista catalã “Tijeras para todas”.
Tradução em português – Tesouras para todas
Original (2° edição) – Tijeras para todas
Geometria, ideologia e geografia das relações de confiança – Apontamentos sobre violências de gênero por Antón Corpas
Geometria da Confiança e do Direito
Se pensarmos que o ditado “as paredes falam”, a denominada sabedoria popular, representa uma verdade, nos enganamos. As paredes ouvem, as paredes veem e as paredes sabem, mas, geralmente, as paredes calam muito do que poderiam dizer. As paredes tem voz, vista e ouvido, e, inclusive, são sensíveis ao tato, mas normalmente preferem fechar os olhos, morder a língua ou sair de perto.
Existe um espaço de direito que se define, se constrói, se destrói ou se transforma nas relações de confiança: familiares e pessoas da comunidade (vizinhas, amigas, colegas de trabalho…). Daí surge uma educação social e de gênero, uma educação política e uma educação sentimental, porque não só se deve aprender qual é seu lugar e sua função, o que lhe cabe decidir e do que se coloca aparte, mas também se deve aprender como sentir, para ser e sobreviver. Assim, um homem que nunca forçaria a “mulher do outro”, o faz sem problemas de consciência com a “mulher própria”, uma mulher que se defenderá com unhas e dentes de um “estranho” suportará fortemente à violação de seu “próprio marido”, o mesmo menino que ameaça a outro por molestar “minha irmã” dará a si mesmo o poder de encurralar “esse corpo”, ou uma mãe pode abafar o grito no caso de uma agressão em que o responsável seja “o irmão”. Para isso é preciso aprender a sentir uma mesma ação de maneiras diferentes.
Essa é a geometria da Confiança e do Direito que, quando se passa entre a própria família, se transforma em uma geometria variável. Então a verdade pode ser paranoia, a raiva ou o temor suscetível, e a proximidade em vez de aproximar, distancia. Não é incomum que quando uma mulher denuncia o abuso ou a agressão de um bom vizinho ou um bom amigo, ela acabe sendo acusada ou estigmatizada, ativa ou passivamente, como um problema. Da mesma forma, os acontecimentos que lidos no papel ou vistos através da tela da televisão, são injustificáveis e indignantes, serão relativos ou “diferentes” atrás da porta ou do outro lado da parede. Não é uma questão de status ou ignorância, não necessariamente. Basta lembrar como Sigmund Freud diagnosticava a Dora – filha de um mecenas editorial de psicanálise – “desejo edipal e polimorfismo da conduta sexual”, quando a jovem sofria um transtorno pelo abuso sexual incessante de um amigo da família. O primeiro patriarca da psicanálise emitia assim um juízo conveniente para a paz familiar de seu amigo e colaborador financeiro.
Como indicam os dados do Centro de Apoio a Vítimas de Agressões Sexuais[1] (CAVAS), é impossível falar de violência sexual sem referir-se às relações de confiança. Segundo esse centro, que trata uma quantidade pequena do total de agressões, dos 271 casos atendidos em 2005, mais de um terço (36,5%) correspondem a “conhecidos da vítima ou que têm algum tipo de relação com ela” e que o centro divide entre “conhecido recente” e “pessoa próxima”. Para agredir, da mesma forma que para se defender de uma agressão, é preciso sentir-se com direito de fazê-lo, e para isso são necessárias convicção pessoal e certa proteção social. O protótipo do violador que ainda se desenha no imaginário coletivo, o sociopata do beco escuro, é consciente, e portanto clandestino, de estar cometendo um delito. Por outro lado, a agressão – de qualquer tipo que seja – de um marido, um irmão ou um amigo, acontece em segredo e amparada na privacidade, mas com um respaldo de parentesco ou familiaridade, com a confiança e a coesão, com a certeza da compreensão, a mediação ou o silêncio da comunidade. Isso não significa que haja aprovação coletiva de determinadas ações, mas sim a facilidade para omiti-las ou para, uma vez visíveis e inegáveis, priorizar a proteção e a reprodução da normalidade: que o pai continue sendo o pai, o irmão, o irmão, e o namorado, o namorado.
É dentro dessa consciência do normal e do subnormal – o que pode acontecer sob a proteção da normalidade, inclusive quando quebra preceitos e tabus como o incesto ou a pederastia – que um marido e não raramente um irmão, um avô, um primo ou um vizinho impõem um ato sexual, mediante disfarces teatrais como o jogo, o carinho, a paixão ou a sedução. Um contexto que permite fazer algo danoso sem pensar na vontade do outro, com uma absoluta tranquilidade moral e emocional, e ainda ter o privilégio de fazer dano “sem querer”, “sem intenção”, “sem saber”.
Os homens que encontram amparo moral e jurídico no matrimônio ou amparo social e moral na família ou na comunidade para impôr uma vontade sexual sistemática ou circunstancialmente, não atuam nunca, nem ontem nem hoje, por impulso de nenhuma disfunção ética ou psicológica, não o fazem por uma falha educativa ou pedagógica, nem sequer por má intenção, senão como assinalamos acima, “por direito”. Da mesma maneira que quando uma mulher não se defende, não o faz por debilidade mental ou física, ou por alguma espécie de choque psicológico, mas por uma ausência de direito.
Ideologia e violência nas relações de confiança
Precisamente quando dizemos “relações de poder” falamos de relações de direito. O poder é muito mais e é habitualmente diferente da imagem do empurrão, da bofetada, do sangue ou dos hematomas. Forçar a um corpo que resiste, gritar a um rosto que responde, afirmar-se com um golpe contra uma negativa, isso não é exatamente o poder. Mesmo que seja a força o que habitualmente permite impôr e normalizar uma situação. O Poder em seu pleno sentido está onde a força não é necessária, onde as coisas podem precisamente “passar” sem nenhum conflito visível nem previsível.
Esses 36,5% que falamos – e que eu não diria que é pouco – não são uma acumulação de “erros” ou de “anomalias” individuais, não é uma porcentagem de amoralidade nem anormalidade, mas uma prova do bom funcionamento das relações de confiança como surdina e colchão das relações de violência. Ao falar de relações de violência, nos referimos também e sobretudo à não-violência das formas de abuso e agressão sexual que não tem porque serem produzidas sob golpes ou força física.
Aí onde se produz a violência sexual de maneira normalizada, “privada” e invisível, é onde se comete mais equívocos na sofisticação da linguagem e nas interpretações. Será interessante pensar que sim, a violência de gênero nas classe altas sempre teve um componente psicológico e respeitoso com os estritos “modos” da alta sociedade, hoje, a importância dos modos e das aparências se aplicam também às classes médias, que aprendem que na não-violência das boas formas está o segredo da decência e da distinção. Ou seja, a relação entre violência, sutileza e bons modos, que era patrimônio das classes altas, tem se democratizado.
Por outro lado, no debate acadêmico, e eu diria que inclusive nas controvérsias privadas em torno da violação marital, continuam existindo divergências – que lembram a incansável e estéril discussão relativa à humanidade do feto e à legitimidade do aborto – sobre a necessidade ou não de forçamento e penetração para se definir agressão. De alguma maneira, essa postura que trata de analisar o acontecimento de maneira isolada, e que exige que para definir uma violação não só haja um conflito de direitos mas também uma derrota física, requer a existência de uma pessoa forte e uma pessoa fraca.
Se lembramos o caso de Nevenka Fernandez, ex-vereadora que denunciou em 2001 o prefeito de Ponferrada por abuso sexual, é antológica a postura do juiz ao colocar em dúvida o relato da denunciante porque, e cito de memória, “a segurança com que a senhora fala me indica que é uma mulher forte e me custa imaginá-la como uma vítima”. Nesta mesma polêmica, o jornalista Raúl del Pozo, muito moderado, muito progressista, rapidamente acrescentou: “Me parece que nessa história obscura pode ter acontecido de tudo, mas o abuso sexual não é um diagnóstico eficaz, nem tampouco o abuso de poder. Ela tem esse poder do apogeu da beleza que é mais poderoso que o de um prefeito.”[2] Mesmo que seja óbvio, me consta, por conhecimento direto, como homens frágeis psicológica ou fisicamente mantém uma sólida posição patriarcal e de dominação e, da mesma maneira, sei que mulheres fortes e inteligentes, em determinados momentos, toleraram ou se calaram diante de agressões e relações sexuais não desejadas.
Essa noção de pessoa forte e pessoa fraca, muito ideológica, muito ao modelo de sabedoria neoliberal, casa muito bem com o mito da violência explícita e visível como a representação fundamental do domínio, e com base em um discurso que quer relacionar competitividade com igualdade de gênero. São conceitos que, com uma firme raiz no imaginário e nas convenções morais, borram facilmente a realidade social das relações de poder, e a própria visão frente a acontecimentos próximos e cotidianos.
Nova geografia para velhas relações de confiança
Sem romper totalmente com o que temos e com as velhas estruturas familiares e comunitárias, o que viemos explicando se desloca e adota novas formas quanto mais a vida se afasta do privado, no trabalho, no ócio, no espaço público ou no ciberespaço.
Demos um salto de uma vida essencialmente ao redor do “lar” em um sentido amplo, a uma promiscuidade mercantil em que se multiplicam as formas e os lugares de familiaridade na mesma medida que se reduzem a profundidade e o compromisso. Damos lugar, então, a uma nova dimensão, uma zona onde convivem a cotidianidade, a proximidade e o desconhecimento mútuo, que podemos definir como relações de confiança e superficialidade. Isso acontece em meio a um turbilhão competitivo e sem ter ocorrido uma transformação substancial das relações sociais de gênero. Podemos dizer que demos um salto mas não fizemos nenhuma ruptura, nenhuma revolução, nenhuma transformação, mesmo que tenham mudado os espaços, os tempos, as técnicas e as tecnologias. Assim, apesar da individualização generalizada do plano de vida e a destruição de numerosos aspectos dos laços comunitários, continuamos perante relações de poder sociais, sem que as modificações do status jurídico das mulheres em geral, e o acesso a outros trabalhos ou a outras opções de algumas mulheres, tenham modificado as linhas de continuidade da dominação masculina.
Apesar de que em todos os discursos e em qualquer das retóricas (pública, privada, institucional ou judicial), tem-se imposto um determinado sentido do politicamente correto, na verdade, não existe um dado resolutivo ou suficiente ao qual se agarrar para falar de diminuição da violência de gênero. E aqueles que consideram o aumento do número de assassinatos de mulheres por seus companheiros ou ex-companheiros e outros dados desse tipo, como os “últimos e violentos” golpes do velho machismo, se enganam. A história e as relações de poder não são tão “progressistas” como nós.
Demos um salto rápido e caímos ainda mais desprotegidos no âmbito do mercado, mas mediados pelas mesmas relações de poder. Isso, que em linhas gerais é a vida social convertida em guerra civil, e em matéria de gênero está longe de indicar uma diminuição da violência e das agressões sexuais, faz mais que previsível seu crescimento.