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Essas lutas trouxeram experiências de mobilização radicais às cidades, que já renderam conquistas e certamente ficarão marcadas na memória da população. Por Caio Martins Ferreira
Passadas as eleições municipais, o transporte público volta à pauta do dia – agora não mais nas promessas de campanha, mas nos decretos dos prefeitos autorizando aumentos na passagem. Na região metropolitana de São Paulo, o preço do ônibus [autocarro] já subiu em pelo menos 18 cidades. Em boa parte desses lugares, as pessoas se organizaram para protestar. Nessas organizações, em geral há uma ou outra pessoa que já participou de mobilizações ou atividades do Movimento Passe Livre (MPL) em São Paulo, e que então entra em contato com o movimento em busca de apoio. Na medida do possível, o MPL tem tentado fortalecer essas lutas de rua, sempre junto com a Fanfarra do MAL (“Movimento Autônomo Libertário”), bateria rebelde que dá a cadência das manifestações.
Cotia
Reeleito em Cotia, o prefeito Carlos Camargo decretou em novembro um aumento da tarifa de ônibus para R$ 2,60. Em resposta, militantes locais organizaram um Comitê de Luta pelo Transporte Público e convocaram um ato contra o aumento no centro da cidade. A manifestação reuniu apenas 40 pessoas, mas ainda assim teve força, animada pela Fanfarra e com grande apoio da população local – que ficou visível quando lojistas vaiaram um PM [membro da Polícia Militar] que exibiu seu revolver para intimidar os manifestantes.
Após o ato, o Comitê decidiu que era preciso aprofundar o debate com a população e realizar reuniões nas comunidades para discutir a situação precária do transporte – em Cotia, ao mesmo tempo que os estudantes têm direito ao passe livre (conquistado com muita luta nos anos 90), há 15 bairros da cidade não têm acesso ao transporte coletivo. Uma primeira atividade com o MPL aconteceu no CDHU do Jd. São Miguel.
Osasco
Após o aumento na tarifa de R$ 3,00 para R$ 3,30 no início de dezembro em Osasco, um grupo de estudantes de cursinho marcou uma manifestação por Facebook. Dos mais de mil confirmados, apenas 50 compareceram. Eram manifestantes que, de modo geral, haviam participado anteriormente apenas dos protestos contra a corrupção na cidade – atos que, impulsionados por grupos de direita, em geral costumam ser tímidos, se limitando à ostentação de cartazes na faixa de pedestres [passagem de peões]. Nesse contexto, a intervenção da Fanfarra do MAL introduziu um elemento estético novo, que elevou a experiência política a outro patamar, dando força ao ato e maior autoconfiança aos manifestantes.
Em jogral, foi feita uma assembleia que decidiu tomar a rua e ir até à Prefeitura. Mas, ao chegar na Prefeitura, a passeata encontra as portas fechadas. Decide-se voltar, porém desta vez fazendo o trajeto pelo Viaduto dos Autonomistas – uma das principais vias de entrada de Osasco. Entusiasmados com a força do ato, em cima da ponte, os manifestantes decidem sentar e bloquear o fluxo de carros. Só meia hora depois chega a PM [Polícia Militar] exigindo a liberação do trânsito. É feita uma negociação e a passeata retoma seu trajeto de volta.
O segundo ato foi convocado logo para o dia seguinte, a fim de escrachar [insultar colectivamente] o prefeito e seus secretários publicamente durante a entrega da reforma de um largo. O evento da inauguração, porém, foi desmarcado na véspera. Mas a manifestação aconteceu do mesmo jeito e, mesmo debaixo de muita chuva, 60 pessoas marcharam até o Terminal Vila Iara.
Ao longo desses dois dias, foi visível o crescimento do movimento: um ato que começou como um evento de Facebook e que talvez nem tivesse saído do local de concentração ganhou força e radicalização a ponto de bloquear uma ponte por meia-hora e invadir um terminal. A Fanfarra e o MPL certamente tiveram um papel fundamental no início desse processo, mas ao final eles já eram completamente dispensáveis, pois os próprios manifestantes assumiram a organização do ato. Em 2013, o grupo voltou a se reunir, marcou panfletagens, e um novo protesto está sendo organizado.
Taboão da Serra
“R$ 3,30 é roubo”, dizia uma pichação em frente à Câmara dos Vereadores do Taboão no início de 2013. Com a mesma palavra de ordem, militantes locais chamaram um ato contra o aumento, que reuniu quase 100 pessoas e foi recebido na Prefeitura pelo secretário de Comunicação. Os manifestantes rechaçaram a proposta do secretário de que fosse formada uma comissão de negociação e exigiram que qualquer conversa fosse feita com todos ali presentes. O secretário cedeu e ficou a proposta de uma reunião entre o Movimento, a Prefeitura e as empresas de transporte. Para confirmar a proposta, uma segunda manifestação aconteceu também no dia seguinte, e a reunião foi marcada para o dia 22.
No dia 16, porém, o prefeito Fernando Fernandes veio a público anunciar a revogação do aumento da tarifa, que volta a custar R$ 3,00. A justificativa para a medida é de que, segundo o contrato da Prefeitura com a Viação Pirajussara, deveria haver um intervalo de pelo menos um ano entre cada aumento e, no caso do último reajuste, essa regra não foi respeitada.
A reversão do aumento já era esperada por muitos militantes, pois Fernandes tinha prometido abaixar o preço do ônibus durante a campanha eleitoral. Isso não diminui a conquista da luta: a pressão exercida pelas mobilizações certamente teve um peso importante na decisão do prefeito. Porém, o movimento continua alerta para qualquer manobra política e não baixou a guarda: um novo ato está marcado para o dia 22, a fim de exigir a garantia de que o aumento não voltará a acontecer.
Mauá e ABC
Em Mauá, onde a tarifa de ônibus subiu 40 centavos no fim de 2012, a mobilização foi construída de forma mais sólida. Além de um intenso trabalho de divulgação, com colagem de lambes e panfletagem pela cidade, os organizadores (que se identificam pela comunidade virtual “Política Sim, Patifaria Não”) buscaram apoio não só do MPL e da Fanfarra, mas de outros grupos organizados na região, como a Apeoesp, OAB, movimento estudantil, anarcopunks e até militantes do PT (o mesmo partido do prefeito).
Resultado: o primeiro ato contra o aumento em Mauá, no dia 5, reuniu quase mil pessoas. Despreparada para controlar uma passeata desse tamanho, a polícia levou um “olé” dos manifestantes, que trancaram a entrada do Terminal Centro, paralisando o fluxo de ônibus. Preocupados com a radicalização após uma hora de bloqueio, os organizadores chamaram o ato, do alto do carro de som, para seguir em marcha e se encerrar na praça da Bíblia. Vendo a força do movimento em Mauá, mas descontentes com a falta de espaço na organização e no carro de som, correntes estudantis trotskistas convocaram a reunião de um Comitê Unificado Contra os Aumentos na Região do ABCD e Mauá, sobrepondo-se aos espaços de organização já existentes em cada município. A reunião aconteceu um dia antes de um ato contra o aumento em São Bernardo que já vinha sendo chamado pelo grupo ativista Anonymous ABC.
No dia do ato, a presença de correntes organizadas se fez notar mais claramente, gerando uma interminável polêmica em assembleia após os Anonymous reclamarem da presença de bandeiras partidárias. Sob chuva constante, 80 pessoas marcharam e panfletaram pelas ruas de São Bernardo embaladas pelas músicas da Fanfarra. A passeata invadiu o terminal municipal, mas guardas civis empurraram os manifestantes para fora, impedindo que o fluxo de ônibus fosse bloqueado.
No dia 12, sábado, aconteceu o segundo ato contra o aumento em Mauá, igualmente forte. O ato seguiu até à avenida de acesso ao Terminal Centro, cuja entrada estava protegida por uma linha de GCMs [Guarda Civil Metropolitana] com escudos e cassetetes. A contragosto do carro de som, os manifestantes avançaram em direção do Terminal, entusiasmados pelos fogos de artifício lançados pelos punks e pelas músicas da Fanfarra. O bloqueio se estendeu por quase duas horas, a tensão com a polícia crescia – na linha de frente, já se sentia o gás de pimenta – enquanto no microfone os organizadores insistiam em agradecer “à PM [Polícia Militar], que está aqui para nos proteger”.
Teve início a repressão: pela frente avançaram os GCMs com cassetetes, seguidos por guardas montados a cavalo, enquanto por trás a Força Tática da PM lançou bombas de estilhaço, gás lacrimogênio e balas de borracha. O carro de som fugiu, parte dos manifestantes correu e outros permaneceram, lançando pedras nos guardas. Cessadas as bombas, o ato se reagrupou em torno da Fanfarra, que tocava “Macho Macho Man” para os policiais. Foram contabilizados 20 feridos e 3 detidos. Em assembleia, decidiu-se marchar até à delegacia, exigindo a libertação dos companheiros.
A cidade tinha parado. Nas ruas do centro, lixeiras viradas, pedras e projéteis no chão, o comércio fechara as portas e a população se aglomerava nas calçadas observando a passeata, que seguia firme embaixo da chuva. Recebiam os panfletos expressando solidariedade: “eles roubam na condução e se a gente reclama, apanha!”. Os manifestantes seguiam por um caminho tortuoso, pois a polícia ainda bloqueava algumas vias, até chegarem em frente à delegacia [esquadra]. Cantavam: “Ou soltam os três ou prendem todos de uma vez!”. De repente, uma viatura da Força Tática estaciona de sopetão na esquina e quatro meganhas [chuis] pulam pra fora apontando armas. Alguns manifestantes começam a correr, mas a Fanfarra não recua e o ato permanece unido. Não há repressão. Companheiros que estavam dentro da delegacia chegam com a notícia: os três seriam liberados e os que estavam no pronto-socorro já passavam bem.
E São Paulo?
Mobilizações aconteceram também em outras cidades da metrópole, como Barueri, Carapicuíba e Franco da Rocha, onde a luta foi regionalizada, envolvendo Caieiras e Francisco Morato. Já na capital paulista, a possibilidade de um aumento na tarifa do ônibus está colocada desde o fim de 2012, quando a Câmara aprovou um Orçamento prevendo um corte de R$ 300 milhões no subsídio para compensação tarifária no transporte coletivo. Durante a votação do Orçamento, o MPL chegou a se mobilizar, com ações de rua e intervenções nas audiências públicas.
O prefeito eleito Fernando Haddad sempre foi enfático ao afirmar que seu único compromisso é o de não aumentar acima da inflação. Mais recentemente, declarou que a passagem deve subir ainda no primeiro semestre, talvez entre maio e junho, para evitar o impacto sobre índices de inflação, a pedido do ministro da Fazenda.
Essa conjuntura gerou um cenário diferente dos últimos anos, quando o aumento em São Paulo precedeu (e justificou) os aumentos nos municípios vizinhos. Nesses anos, foi a luta contra o aumento em São Paulo que estimulou o desenvolvimento de lutas nas outras cidades. Desta vez, temos o inverso: as lutas metropolitanas estão gerando um clima de tensão antes mesmo da passagem subir na capital. Independentemente do quanto conseguirão se manter firmes e fortalecer a batalha que está por vir em São Paulo, esses movimentos são importantes por si só. Suas lutas trouxeram experiências de mobilização radicais às cidades, que já renderam conquistas e certamente ficarão marcadas na memória da população.
Nota sobre o autor
Caio Martins Ferreira é militante do Movimento Passe Livre.